Coleccionava divisões, com medo de regressar a um pequeno canto da infância, e percebeu que a linguagem era o caminho para se definir como alemão. "Eu e a minha irmã não tínhamos quartos ou um espaço só para nós. Na sala, por baixo das duas janelas, havia um cantinho onde guardava os meus livros e aguarelas. Muitas vezes tinha de imaginar as coisas de que precisava", recordou à "The Paris Review", explicando as origens precoces da escrita e da pintura. O primeiro livro, de poesia, combinava os seus versos e os seus desenhos, prática mantida até tarde – são dele as ilustrações em "Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas", obra de José Saramago lançada postumamente em 2014, provavelmente um dos últimos trabalhos do autor alemão, que morreu ontem, aos 87 anos, num hospital em Lübeck, cenário da Casa Museu Günter Grass.
Considerado pela crítica, comercialmente popular, envolto em polémicas, Grass estreou-se com "O Tambor de Lata", em 1958, que encetava aquela que ficou conhecida como a trilogia de Danzing, obra interdita no bloco de Leste e na Península Ibérica pelo teor pornográfico, pedra inaugural de uma narrativa sobre o dualismo naquela cidade, o impacto do nazismo na família comum, a ofensiva russa e o aclamado "milagre económico" no rescaldo da guerra.
Seguiram-se "O Gato e o Rato" (1963) e "O Cão de Hitler" (1965), num regresso aos primeiros tempos de vida na costa do Báltico. Nascido em 1927 na actual cidade polaca de Gdansk, filho de merceeiros protestantes, combateu no exército alemão como artilheiro durante a Segunda Guerra. A experiência é evocada na sua autobiografia, "Descascar a Cebola" (2006), que lhe valeu acusações de traição, oportunismo e hipocrisia, enquanto o escritor, para muitos a voz da consciência moral do seu país, desvalorizou a sua participação no conflito, isenta de disparos ("nunca dei um tiro") e outras atrocidades, e rebatendo que à época julgava que as SS não passavam de uma "unidade de elite". De pouco serviu aos compatriotas que ao longo das décadas o viram de dedo em riste e imaculado ao passado nazi, e que em 1985 expressou publicamente o seu desagrado com a visita de Helmut Kohl e Ronald Reagan a um cemitério militar em Butburg, último endereço de vários Waffen-SS.
Ferido e capturado pelas forças americanas em 1945, Günter trabalhou numa mina e foi baterista de uma banda de jazz após a sua libertação. Mais tarde estudaria Arte em Düsseldorf e Berlim. Pouco depois de se casar com a primeira mulher, a bailarina Anna Schwarz, participa nos encontros do Grupo47, reunião informal mas influente de escritores e críticos germânicos, que se encontraram pela primeira vez em Setembro de 1947, organizados em torno da missão de promover o uso da linguagem literária como via alternativa ao estilo propagandístico da era nazi, projecto mantido até 1967. Por essa altura já Grass se instalara alguns anos em Paris com a família, onde escreveria "O Tambor de Lata" (adaptado ao cinema em 1979), descobrira os títulos banidos pelo nacional-socialismo, a prosa de Faulkner e Hemingway, a necessidade de enriquecer um léxico ceifado pela política do Reich e um lugar bem colocado nas letras do pós–guerra para o homem do cachimbo.
CRÍTICAS Poeta, romancista, argumentista, escultor, pintor, ensaísta, com a obra quase sempre exposta ao debate, mereceu o Nobel atribuído pela Academia Sueca em 1999, que então distinguiu o seu "enorme trabalho de revisão da história contemporânea, lembrando os esquecidos: as vítimas, os perdedores e as mentiras que queriam esquecer por outrora nelas acreditarem".
Entre o timbre literário e o político, foi responsável pelos discursos de Willy Brandt ao longo de uma década, apoiante de longa data do Partido Social-Democrata e um dos nomes mais críticos do processo de reunificação alemã. Chegou a estabelecer paralelismos com a "anexação da Áustria" por Hitler. Em 1990 dedicou dois volumes aos seus discursos e intervenções sobre o tema.
Mantido na sombra o seu passado, volta a ser escrutinado em 2012, depois de lançar um poema, "O Que Deve Ser Dito", em que criticava a linguagem hostil de Israel sobre o programa nuclear iraniano, razão para nova controvérsia além-fronteiras e para uma resposta do presidente Benjamin Netanyahu. Mas a polémica estalara já dentro de portas, quando o antimilitarista acreditava que a Alemanha unificada poderia comprometer mais uma vez a paz no velho continente, com vários compatriotas a acusá-lo de moralismo pedante. Naquele mesmo ano, mais um poema da sua lavra, agora a criticar o tratamento servido aos gregos em tempo de crise. Em "A Desgraça da Europa" Grass acusa a União de condenar "a mente que concebeu a democracia" à pobreza.
Tópicos para juntar aos desafios do século de Grass. A mitologia alemã e a tumultuosa Polónia dos anos 70, evocados em "O Pregado"; a ascensão de Hitler ao poder e o drama sofrido no final da guerra por milhares de refugiados alemães dos territórios de Leste, tratados em "A Passo de Caranguejo", ou uma centena de histórias para recordar "O Meu Século". Em 2010 editou o terceiro livro de memórias, depois de "A Caixa", lançado no mesmo ano.
Amante da boa mesa e do vinho, crítico da internet, dos computadores e das redes sociais ("quem tem 500 amigos no Facebook não tem amigos"), deu por encerrada a produção literária em Janeiro de 2014, dada a idade avançada, admitindo que cada livro lhe exigia um fôlego de cinco anos.