O propósito era o Dia do Manifesto, em 2012, no Teatro Maria Matos. Tiago Sousa recolhera, junto do público, desejos e reclamações de mudança. O músico desafiou-se a si próprio para criar música que se inspirasse nesses mesmos escritos e para depois os acompanhar. Uma primeira apresentação desse trabalho surgiu em palco nessa altura. Agora, quase três anos depois, “Coro das Vontades” tem novos arranjos, um inédito e deu em disco (que será oferecido a todos os que assistirem ao espectáculo). É uma noite em que a prioridade será dada à relação entre música e política, mas haverá mais – porque Tiago Sousa é o compositor e intérprete que leva o piano por caminhos sempre distintos. A música que escreveu para cinema (“Bibliografia” ou “Canal”) e colaborações como o dueto com Tó Trips (de “A Conquista do Pão”) também estarão em cena. O coro pode ir mudando, as vontades são sempre idênticas, mais ou menos óbvias. E há sempre um desejo de mudança.
A cultura e a expressão artística têm na sociedade portuguesa alguma influência, a nível social e político? Que tipo de influência?
Não olho para as manifestações artísticas como um corpo estranho à sociedade. A arte é um sintoma da sociedade. A verdade é que uma influencia a outra, mesmo que a partir de uma posição distanciada. Aquilo que ela poderá ter a dizer sobre a organização social será apenas devido à sua natureza.
E pode fazer a mudança?
Não aponta caminhos de mudança, antes é um sintoma de processos latentes na sociedade, o corpo efectivo das diferentes manifestações humanas.
E em particular este espectáculo, esta gravação, tinham como meta deixar uma marca deste género, influenciar pessoas, atitudes ou valores?
Esperávamos antes estabelecer o diálogo latente no campo das artes, sobretudo isso. Na história de movimentos como os futuristas, construtivistas ou surrealistas, a arte era militante, programática, queria participar numa ideia de progresso que animava certos círculos intelectuais e políticos. Os futuristas atentavam contra o museu, os cânones académicos, a beleza; a Internacional Situacionista reclamava a revolução da vida quotidiana como programa contra o capitalismo e a tecnocracia; os construtivistas russos colocaram os seus pincéis ao serviço da causa proletária…
Como é que escolheram os temas a incluir na gravação? Quais foram os critérios?
Os temas trazidos pelos textos foram a base conceptual de onde partimos. No fundo, se existe um ponto de relação entre a estética e a política, é precisamente porque ambas as realidades se estabelecem a partir de valores, princípios e ideais. Quando pedimos às pessoas que nos enviassem textos sobre o momento político actual, já sabíamos que iríamos partir daí para pensar o que poderia ser dito através do discurso artístico.
Obras partilhadas, como esta, não são muito habituais…
E é uma partilha estabelecida por via de uma reciprocidade. O público surge como a comunidade de afectos que estabelece um contexto e limites ideológicos nos quais o autor se integra e aos quais reage, retribuindo com os seus próprios contextos e limites ideológicos. Ou seja, estamos ambos a criar e a interpretar. O momento criativo é apenas uma fracção, uma visão que se partilha agora.
Neste caso, os textos foram escritos porque foram pedidos. É mais fácil reflectir sobre qualquer tema se for uma sugestão vinda do exterior. Sozinhos, somos preguiçosos?
Mais do que falar de preguiça, acho que devemos falar de alienação. O que acontece na sociedade portuguesa é a capacidade das classes dominantes de estabelecerem o discurso político como um discurso altamente técnico. É apresentado como uma verdade dogmática, desenvolvendo a ideia de limites na economia, impostos pelo mercado. Este discurso faz parte do aparato espectacular que nos é imposto todos os dias. O resultado é um misto de emancipação e alienação. E nesta dicotomia podem-se explorar os limites e as potencialidade de uma obra de arte.
Entre 2012 e agora 2015, entre a primeira apresentação do Coro das Vontades e este disco e novo concerto, aconteceram mudanças? Viram transformações dignas de registo?
Na verdade, sinto que a nossa situação particular é exactamente a mesma. Na altura, o que unia os textos, de um modo geral, era o sentimento das pessoas, alienadas da autonomia e da autodeterminação política. Continuamos a querer opor–nos a um mundo em que as imagens, mas também os sons, se materializam como instrumentos sensacionalistas enraizados em lugares-comuns. Reclamamos a autodeterminação por oposição à condição do cidadão enquanto ente político passivo, sujeito à ciência, à burocracia e à jurisdição, por se julgar demasiado ignorante.
Ao ouvir agora, algum tempo depois, estas composições, a validade mantém-se?
As minhas obras têm sempre algo de impermanente. Eu próprio, como compositor e músico, tenho um método muito experimental, o que faz com que as minhas criações sejam objecto de pesquisa e desenvolvimento. Os temas que irão ser tocados já estão um pouco diferentes de como foram registados, mas acho que isso é resultado do usufruto que tiro de cada experiência.
Poderia ser o Coro das Vontades algo anual, por exemplo? Ou seja, ter uma periodicidade, transformar-se num momento de agenda, em que a contestação ganha mediatismo de uma outra forma?
Isso não sei, mas tenho a certeza de que a discussão sobre a qual nos focámos não começou agora nem acabará amanhã. O que sinto na sociedade é que esse momento de contestação está na ordem do dia. Simplesmente, ainda não soubemos desenvolver modos emancipados de agir enquanto espectadores. Procuramos recuperar a ideia de que a experiência criativa não é uma actividade exclusiva do artista, mas um lugar onde todos se podem encontrar.
Uma noite com o Coro das Vontades pode ser identificada por alguns como algo próximo de uma manifestação política, de ideologia definida. Será isso correcto?
É correcto, mas é impreciso. De facto, há muito espaço para imprecisão neste espectáculo e, exceptuando estas questões fundamentais de que falei, existe um enorme espaço que quisemos deixar em aberto. Acima de tudo, a nossa obra é um apelo à crítica e à dialéctica.
Concerto