Billie Holiday. Frutos, flores e outras lendas


Frankie Freedom serviu-lhe uma tigela de cereais e Billie colapsou pouco depois, na sua casa em Nova Iorque. O jovem músico que a acompanhava deu o alerta, Holiday acabou internada no Metropolitan Hospital e mal lhe retiraram a máscara de oxigénio acendeu um cigarro. Rebeldia menor. O perfume a gardénia duraria pouco mais. Tinha 44…


Frankie Freedom serviu-lhe uma tigela de cereais e Billie colapsou pouco depois, na sua casa em Nova Iorque. O jovem músico que a acompanhava deu o alerta, Holiday acabou internada no Metropolitan Hospital e mal lhe retiraram a máscara de oxigénio acendeu um cigarro. Rebeldia menor. O perfume a gardénia duraria pouco mais. Tinha 44 anos, pouco peso, uma cirrose provocada pelo excesso de álcool, dificuldades respiratórias e cardíacas motivadas pelo tabaco, o cerco da polícia pela posse de drogas, as algemas em redor dos pulsos, as marcas na pele das injecções regulares de heroína, um longo historial de feridas escondidas da vista desarmada, como qualquer lenda pede. E ainda 70 cêntimos no banco e 750 dólares junto ao corpo, o preço de um furo de um tablóide, o nada que sobrava a quem esteve muito longe de saber o que é ter tudo.

“Tende a defender que a sua música não passa de um produto inconsciente e passivo das contingências da sua vida”, apontava Angela Davis, citada pelo “The Guardian” sobre “Lady Sings the Blues”, o livro de memórias que a cantora nascida há 100 anos ajudou William Dufty a escrever, em 1956, e que em 1972 chegava ao ecrã sob a forma de biopic, com Diana Ross no papel principal. Em ano de efeméride, John Szwed revê a autobiografia de Billie, analisa a sua imagem pública nos diferentes meios, da imprensa ao cinema, e ilumina as afinidades, até então pouco focadas, com os realizadores Charles Laughton e Orson Welles. O resultado é o livro “Billie Holiday: The Musician and the Myth”, para ouvir ao som de “The Centennial Colection”, a colectânea de 20 clássicos que evoca uma das vozes mais idiossincráticas do jazz, que actuava pela última vez em Nova Iorque a 25 de Maio de 1959, cinco anos depois de uma digressão bem sucedida pela Europa e de lançar os primeiros álbuns.

Sendo mais que uma soma de azares, é incontornável rever os dissabores da existência breve de Eleanora Fagan, nascida a 7 de Abril de 1915 filha de um casal adolescente. A filha de uma doméstica, e do músico Clarence Holiday, de quem viria a adoptar o apelido, passou boa parte da infância atribulada em Baltimore, e em 1925, na senda da crónica falta de assiduidade na escola, é encaminhada para a House of Good Shepherd, uma instituição para raparigas afro-americanas, depois de ter sido vítima de abusos sexuais.

No final da década seguiu para Nova Iorque com a mãe, empregada num bordel no Harlem, e aos 14 anos foi presa por se prostituir. Mais por desespero que por desejo, disse que sabia cantar e arriscou fazê-lo para ganhar a vida, depois de falhada a tentativa de dançar no cabaré de Jerry Preston, o Log Cabin. Billie, nome inspirado na actriz Billie Dove, tinha 18 anos quando o produtor John Hammond a escutou num clube de jazz do bairro e percebeu que a circunstância podia dar frutos muito menos podres que aqueles que se colhiam em tempos de segregação. Ao lado do então desconhecido clarinetista Benny Goodman deu voz a faixas como “Your Mother’s Son-In-Law”, primeiro lançamento comercial.

Em 1935, a voz melancólica, fã de Bessie Smith, acompanhou o pianista Teddy Wilson, encetou um ciclo de singles, casos de “What a Little Moonlight Can Do” e “Miss Brown to You”, e figurou no ecrã com Duke Ellington em “Sinfony  in Black”. Dois anos mais tarde, o saxofonista Lester Young dá-lhe o nome de “Lady Day”, e Billie junta-se à digressão da orquestra Count Basie. Menos feliz foi a parceria, no ano seguinte, com o conjunto de Artie Shaw – os promotores opuseram--se à presença de uma negra num colectivo branco.

A solo, já com uma gardénia no cabelo, parte da sua imagem de marca, actua na New York’s Café Society, onde estreia “God Bless the Child” e “Strange Fruit”. A Columbia, a sua editora à época, recusa dar eco à controversa balada escrita por Lewis Allen sobre o linchamento dos negros nos estados do Sul, um risco assumido pela Commodore, que viu as rádios banirem a canção – e a fasquia do hit proibido a subir.

De homem em homem, de marido em marido, de tempestade em tempestade, de abuso em abuso, os gostos e desgostos cruzaram-se em “T’ain’t Nobody’s Business If I Do”, “My Man” e outros espelhos de relações destrutivas. Com James Monroe iniciou-se no ópio, com Joe Guy rendeu-se à heroína, e depois da morte deste, em 1945, já depois de assinar pela Decca, afundou-se no álcool. Em 1947, ano em que contracena com o ídolo Louis Armstrong em “New Orleans”, é presa, acusada de posse de drogas, e forçada a reabilitação na Virgínia. No rescaldo do episódio, esgota a sala do Carnegie Hall, mas vários clubes em Nova Iorque fecham–lhe as portas. Com John Levy, o escroque que se segue, volta a ser detida por posse de substâncias ilegais, sina que se repetiria com Louis McKay, mais um a tirar vantagem do dinheiro e do nome da cantora.

Apesar de a decadência começar a contagiar a voz, não desilude na TV em “The Sound of Jazz” (1958), com Coleman Hawkins, Ben Webster e Lester Young, entre outros. Em 1959, quatro meses antes da sua morte, completa a última sessão em estúdio, para a MGM. “Last Recordings” é editado postumamente. A banda sonora do centenário faz-se com “Summertime”, “These Foolish Things (Remind Me of You)”, “The Very Thought of You”, “Them There Eyes”, “God Bless the Child”, “Gloomy Sunday”, e outros hinos.