A estrela pop do rap


Aos anos que aprendemos a não confiar na Wikipédia – mas haverá alguém, aí desse lado, que possa afirmar de peito cheio que ela é ferramenta de gente preguiçosa? Se quer responder, verifique primeiro o histórico semanal no seu browser predilecto. Por estes dias, é nesse canto do ciberespaço que está guardado o mais honesto…


Aos anos que aprendemos a não confiar na Wikipédia – mas haverá alguém, aí desse lado, que possa afirmar de peito cheio que ela é ferramenta de gente preguiçosa? Se quer responder, verifique primeiro o histórico semanal no seu browser predilecto. Por estes dias, é nesse canto do ciberespaço que está guardado o mais honesto retrato que os mortais informatizados possuem. Enfim, vamos seguir caminho. Através destas pesquisas chegámos à conclusão de que a cidade de Compton, que faz parte do gigantesco aglomerado urbano que é Los Angeles, nos EUA, tem uma densidade populacional de x, um índice de pluviosidade de y e outros dados que tais. Mas é conhecida (e, vá lá, esta parte já a sabíamos) por ser uma cidade com forte tradição no rap – sobretudo por ser o local de onde os N.W.A. são originários. Sem querer desrespeitar a história de um dos maiores grupos da história do hip hop, estes Niggaz Wit Attitudes – descodificando a sigla, gente responsável por hits, que se tornaram hinos, como “Fuck tha Police” – já merecem ter alguém a seu lado naquilo que é este género de souvenir barato da sua cidade.
 
Quando em 1988 Eazy-E, Dr. Dre e companhia lançaram o disco de estreia, “Straight Outta Compton”, Kendrick Lamar tinha um ano de idade. Vinte e sete anos depois, também natural de Compton, Lamar é o maior ícone do hip hop mundial (Kanye? Estás aí?), responsável por bater o record do Spotify – que antes pertencia a Michael Bublé – com 9,6 milhões de streams no primeiro dia em que “To Pimp a Butterfly”, novo disco do rapper, esteve disponível. Feito que devia bastar para a Wikipédia o pôr ao lado dos N.W.A. (quanto a outros menos quantitativos já lá iremos). Dizemos nós: claro.
 
Apesar de os pais serem naturais de Chicago, Kendrick nasceu e cresceu com Compton. Sabe-se que o seu nome foi escolhido pela mãe, em honra do cantor Eddie Kendricks, co-fundador dos Temptations, um dos nomes maiores da Motown.
 
Tudo parecia indicar que Kendrick se tornaria alguém de quem se iria ouvir falar – afinal, quando um miúdo de oito anos testemunha a rodagem do teledisco de “California Love”, hit de 2Pac e Dr.Dre, há pouco a fazer que não ser rapper. Estávamos em 1995. “Vi o 2Pac e o Dre gravarem o teledisco, estava ali por acaso, mas lembro-me de tudo, foi talvez um dos momentos mais importantes da minha vida e mais felizes da minha infância. Lembro-me da polícia nas motas a perseguir os carros, tudo isso teve muito impacto em mim”, contou numa entrevista à MTV em 2012. Se assim não fosse, Kendrick não teria dedicado a última faixa deste “To Pimp a Butterfly” a 2Pac, numa espécie de entrevista que o próprio faz ao rapper morto em 1996, uma das suas grandes influências.
 
Ponteiros para a frente que o relógio não pára ao almoço. Em 2004, a cidade de Carson, Califórnia, viu nascer aquela que se tornaria a casa de Kendrick Lamar e de outros rappers de talento com quem partilha a vida e a música, a Top Dawg Entertainment (TDE). Pela mão genial do fundador e CEO Antonhy “Top Dawg” Tiffith, a cartilha de rappers desta editora independente começou um ano após a sua criação, com Jay Rock. E é ainda no mesmo ano que Kendrick Lamar é captado por Tiffith, que viu no jovem de 17 anos, conhecido na altura como K-Dot, técnica, escrita e boa voz. Variáveis que, unidas, catapultaram Lamar para o meio do hip hop, seguido por estrelas já formadas, como The Game – com quem fez uma digressão que reforçou a sua posição.
 
Seguiram-se um punhado de mixtapes e trabalhos libertados de forma independente, sempre à boleia dos compinchas da TDE, com quem em 2009 formou o grupo Black Hippy, a meias com Jay Rock, Ab-Soul e Schoolboy Q. Nada como a sua estreia em álbum, “Section.80”, lançado apenas no iTunes. Objecto que acabou com as dúvidas, perdão, mais que isso, “Section.80” tratou de dizer a quem andava distraído que este era um daqueles casos sérios que não se podem ignorar. 
 
Motivo pelo qual em Outubro de 2012, “good kid, m.A.A.d city”, segundo disco de originais, já com dedo e distribuição Interscope – editora que se antecipou ao tempo – rebentou com as escalas, os tops e tudo o resto. Bendito disco este que, além de ter sido um dos discos do ano – para alguns do século, até agora, claro –, fez com que o norte--americano corresse o mundo e chegasse a públicos que o rap nunca pensou tocar. “Bitch, Don’t Kill My Vibe”, foi cantado por netos e avós, single sem preconceitos que se tornou resposta obrigatória em muitas discussões de amigos, família, chuto para canto de alguns maridos pouco pacientes.
 
Enfim, hora de “To Pimp a Butterfly”, registo que é bem capaz de fazer alguns rappers lançar o seu disco noutro ano, só para não serem ofuscados por este holofote. Ou o contrário, luz aglomeradora de processos criativos, de uma espécie “quero chegar a este nível”. Com colaborações de Snoop Dog, Rapsody, George Clinton, Thundercat e produções de Knxwledge, Flying Lotus, Rahki, Sounwave, entre outros, o ritmo não parece abrandar. Kendrick Lamar sobe a parada e diz ao mundo que o hip hop (não) é para todos. Pelo menos, se assim continuar a ser feito. Wikipédia, aponta isto.