Lena Dunham. A miúda está bem (e recomenda-se)


Publicou o seu primeiro livro em Setembro e a versão portuguesa acaba de sair. “Não sou esse tipo de miúda”, avisa a autora, uma informação útil apenas para quem nunca ouviu falar dela, se é que isso é possível. Aos 28 anos,  a primeira mulher a ser premiada pelo Directors Guild Award por direcção de…


Publicou o seu primeiro livro em Setembro e a versão portuguesa acaba de sair. “Não sou esse tipo de miúda”, avisa a autora, uma informação útil apenas para quem nunca ouviu falar dela, se é que isso é possível. Aos 28 anos,  a primeira mulher a ser premiada pelo Directors Guild Award por direcção de uma série de comédia, “Girls”, vencedora de dois Globos de Ouro, abre o livro de memórias. Já? Claro, está na altura de falar de ex-namorados, dietas, trabalho e outras dores de crescimento

Falemos de axilas e mononucleose sem que a nossa sobrancelha desalinhada se agite de nervoso face aos  níveis de escatologia. “Eu dispo-me na televisão. Muito.” O aviso é informação caduca para quem vê a série “Girls”. Corpos todos têm, mas poucos conseguem personificar o espírito do desespero sexual – as palavras são dela, que nunca se deu ao trabalho de comprar roupa interior cor de pele ou limitar a presença de mirones durante as filmagens. “‘Mas queres mesmo que te chupe o mamilo?’, perguntou o Jeff, o meu parceiro de cena confuso.” Não, não há problema, porque a autora, que não é esse tipo de miúda, mas isso já nós sabemos, soube dar cabeça ao tronco que se mostra em público, distante dos parâmetros dos manequins, da régua e esquadro do Photoshop, ou da sedução do botox.  

O exibicionismo, recorda Lena Dunham no livro agora publicado em português pela Presença, começou na faculdade. “O meu corpo era simplesmente uma ferramenta para contar a história. Não se podia dizer que era eu, era um adereço com cuecas enormes que utilizei de forma sensata. Não parecia ser elegante nem bonita, ou sequer ter muito talento.” Os dois primeiros atributos podem ser questionáveis. O terceiro abunda em doses suficientes para que ninguém perca já muito tempo a debater a importância da elegância e da beleza. Os hispters da geração milénio desfraldaram a bandeira da desarmonia. Lena ajudou a hastear o hype. Na terra das oportunidades, até tu podes ser a rapariga mais fixe do bairro. “És de Nova Iorque, o que te torna naturalmente interessante”, atira num dos episódios da série.

Em Fevereiro de 2014, a franja milimetricamente composta da editora Ana Wintour concordou dar-lhe (ou desejou com muita força) as honras de primeira página da edição norte-americana da revista “Vogue” – mais um abanão no ideal de beleza medido e pesado nos anos 90. Se a cada era a sua musa ou heroína, aquela década teve Bridget Jones, o seu diário de falhanços, e o axioma “por favor, tenham dó de mim”. A primeira década do século xxi encheu a cidade de sexo e desfiou as aventuras e desventuras de Carrie Bradshaw e companhia, enquanto se tragavam “Cosmopolitan” alheadas de preocupações com o preço do metro quadrado em Manhattan. Na verdade, convivemos com mais cidade que sexo, e as espectadoras até podiam ter melhor sorte nos parceiros que as personagens da série, mas jamais conseguiriam vestir-se tão bem como a colunista e as amigas, mais um volte-face nas esperanças femininas – sim, isto é tudo muito bonito mas não é para nós. Como se não bastasse, não há muitos meses, Renée Zellweger surgiu em público irreconhecível, depois de uma intervenção no rosto. Em 2013, depois de uma ida ao médico, Sarah Jessica Parker confessava, sem paninhos quentes sobre qualquer par de Manolo Blahniks: “Os saltos altos deram-me cabo dos pés.” Assim de repente já não parece tão estranho começar um texto a falar de axilas e mononucleose.

Lena Dunham, que escreve e produz, e ainda Allison Williams, Jemima Kirke, e Zosia Mamet, encarnam a resignação face a uma economia doente, com a lei da sobrevivência a adiantar-se ao puro hedonismo.

Chegada à quarta temporada do programa da HBO, Hannah Horvath, a personagem interpretada por Dunham, começou a crescer, mantendo os pés na terra, onde aliás vive a maioria das mortais, não tão comuns como ela, é certo, mas talvez mais afectas a Lena que às deusas das capas da “Sports Illustrated”.

Pelo Norte de Brooklyn e Williamsburg, bem-vindos ao epicentro do cool, berço da filha de uma fotógrafa e de um pintor, formada em Escrita Criativa pela Universidade de Oberlin (onde teria sido alvo de uma tentativa de violação por parte de um colega, revelação que deu que falar e levou Lena, e a própria editora, a ponderar a revisão dessa página, já que o episódio deverá mais à efabulação que à verdade).

Em 2010 foi premiada pela Melhor Longa Metragem de Ficção no festival South by Southwest, com o filme independente “Tiny Furniture”, com ela no elenco. No começo de 2012, “Girls” recebia sinal verde da HBO, com Judd Apatow a assegurar a produção executiva da saga, que sem grandes anestesias pelo caminho, e rédea curta no glamour e no sucesso do dia-a-dia, ofereceu algumas lições.

“A partir de agora vou começar a perguntar às pessoas se são gay antes de dormir com elas”, ou “Eu não perdi o meu trabalho, dei-o a outro”.

Se a vida é difícil na ficção, os primeiros passos da fama na vida real não foram mais suaves. Howard Stern gozou com o excesso de peso da protagonista. Joan River seguiu-lhe o exemplo e censurou o encorajamento da obesidade, da diabetes e de outras epidemias pós-modernas. Aos 28 anos, Lena continua a ser a miúda com sete tatuagens, uma delas ao fundo das costas, com o nome da sua personagem preferida dos livros infantis, Eloise, e outra, no ombro, do inofensivo touro Ferdinand. Sabe que todas as doses de tinta na pele são permitidas – excepto se contemplarem a inscrição do nome ou da cara do namorado. A miúda pode ser miúda, mas não é parva. “Er quase como um desafio à nossa separação”, justificou a companheira de Jack Antonoff, o guitarrista da banda Fun. “Já tinha tido namorados, mas nunca um que tivesse um papel construtivo na sociedade e que tornasse a minha vida melhor”, desabafou.

Admita-se que há sempre um momento na vida de uma mulher em que apetece dar razão a Wallis, a duquesa de Windsor, por mais efémero que seja esse pensamento: nunca se é suficientemente rica nem suficientemente magra. Consta que Dunham tem cumprido um programa de exercícios com a guru do fitness Tracy Anderson, a mentora de Gwyneth Paltrow e de Madonna, avançou a revista britânica Heat, garantindo que a actriz tem preocupações como toda a gente, mas recusa chegar ao estatuto de esqueleto vaidoso. Entretanto, o TMZ revelou que a actriz comprou uma mansão de milhões em Los Angeles, cidade que até há pouco a deprimia bastante. “Lar é onde moram as nossas lágrimas”, ironizou o site de fofocas.
Não é preciso perder tempo a vasculhar handicaps por aí. As suas tentativas para perder peso são recordadas em “Não Sou Esse Tipo de Miúda”, com um exaustivo relatório do menu seguido em 2010 (courgetes cozidas a vapor, óleo de linhaça, taça de sopa vegetariana, duas dentadinhas de batatas fritas). Somem-se as quatro vezes que proferiu as palavras amo-te; a sua base de dados íntima (“Barry. Número quatro: fornicámos. Foi um 69. Terrivelmente agressivo. Só uma vez. Ninguém se veio”); Igor, o namorado da internet; o pior email de sempre; cenas que não se dizem aos amigos; o que guarda no interior da mala (cheques, iPhone – o velho e o novo – cartões-de-visita, ibuprofeno e tamiflu, “para darem segurança emocional”); os desafios profissionais, coisas que aprendeu com a mãe (“primeiro a família, em segundo o trabalho, a vingança em terceiro”). Por falar em família, em 2014, numa gala promovida pela comunidade LGBT, apoiou publicamente a irmã, Grace, depois de esta ter revelado a sua homossexualidade. Lena assume ainda que assiste a “Girls” ao lado dos pais, e que não conduz, o menor dos problemas para quem passou a adolescência a ouvir mimos como “és gorda e odiosa” – “e eu sobrevivi”, contrapõe a rainha da angústia, como já lhe chamaram.

Se poucos ou nenhuns como a autora e produtora iluminaram com tanta precisão o desespero de não ser amado, desejado, atraente, popular e bem--sucedido, impõe-se a reconstituição de uma história infantil – e não, não tem Eloise como personagem principal. Lembra-se de como o patinho feio arruma por fim com a concorrência ao tornar-se um admirável cisne? O caminho da autoconfiança é por aqui. Suprema ironia, ou felizarda justiça, Dunham chegou ao ponto de ser incluída na lista das 100 pessoas mais influentes do mundo da revista “Time”. O contrato para a edição do seu livro rondou valores na ordem dos 3,5 milhões de dólares. E, bom, é caso para relembrar que o namorado é uma estrela rock, um ponto extra no capítulo das relações.

“Era muito conversadora, não tinha muitos amigos, detestava sair de casa, detestava fazer desporto, detestava tudo em geral”, partilhou com o “The Guardian” o ano passado, ao revisitar a infância. No artigo apresentaram-na como um cruzamento entre Woody Allen e Nora Ephron. Surpreendida com o êxito? “Por um lado sinto-me muito surpreendida, sim, por outro… bom, quando trabalhas muito, quando te esforças por repetir qualquer coisa e enfiá-la pela goela das pessoas abaixo, alguma coisa há-de acontecer.” É evidente que um empurrão exterior pode fazer toda a diferença, que a falta dele pode comprometer o futuro, e que uma tirada certa na hora certa pode resolver a coisa – mesmo que os nossos ascendentes só percebam a ideia quatro temporadas depois. Recuemos à casa de partida, ao primeiro dos episódios de “Girls”, quando os pais de Hannah anunciam que tencionam fechar a torneira do apoio financeiro. É aí que a miúda diz: “Posso ser a voz da minha geração. Ou pelo menos a voz de uma geração.” J