A guerra civil na Somália ajudou a moldar os primeiros anos da vida de Mohamed Muktar Jama Farah. Filho de um inglês e de uma somali que se conheceram durante as férias, mudou-se para o Djibouti ainda criança em busca de segurança. O estereótipo pode ser forte, mas o agora ídolo do atletismo mundial é o primeiro a garantir que não encaixa na ideia de viver com o pé descalço e muitas dificuldades. “Havia pessoas assim, mas eu morava numa casa normal de pedra com a minha mãe, avós e dois irmãos mais novos. O meu avô trabalhava num banco e tínhamos uma vida confortável. Nem era fácil nem dura.”
Só faltava o pai. A ausência da figura paterna marcou as primeiras memórias de Mo Farah e foi por causa disso que abandonou África rumo a Londres quando tinha nove anos. O inglês era uma língua que desconhecia quase por completo mas a paixão pelo desporto ia mudar isso. Quando entrou na escola só sabia dizer três frases: “Desculpe”, “Onde é a casa de banho?” e “Vamos lá então”. Para algumas coisas dava muito jeito, para outras só dificultava, como é exemplo a luta em que se envolveu quando usou a última a falar com o maior rufia da escola, sem se aperceber de um segundo sentido na afirmação.
Era nas aulas de Educação Física que se conseguia expressar melhor. Fanático por futebol, tinha o sonho de ser extremo do Arsenal, mas o professor Alan Watkinson tinha outra ideia em mente. Mo Farah era um prodígio no atletismo. Não apenas a correr mas também nas disciplinas técnicas. “Para ele ter alguma probabilidade de sucesso, teria de ser a aposta de alguém, uma vez que havia muitas distracções pelo caminho”, explicou Watkinson em 2012. E foi isso que o professor fez: apostou no jovem e levou-o a competir por toda a Inglaterra, aproveitando as viagens de carro para fazer evoluir o inglês de Mo Farah. O jovem começou a ganhar todas as corridas em que competia, com uma pequena excepção. “Lembro-me da primeira prova de cross-country dele. Não ganhou porque não sabia por onde ir. Estava sempre a parar e a olhar por cima do ombro para ver se os outros tinham seguido na mesma direcção.”
A fase em que Watkinson usava meia hora de futebol para distrair Mo Farah antes de se concentrar no atletismo foi ultrapassada e o atletismo transformou-se na única prioridade. O Arsenal ganhava com Arsène Wenger mas o atleta só pensava em fazer a diferença na pista. E se o professor de Educação Física foi o primeiro mentor, também houve espaço para a ajuda de Paula Radcliffe, campeã mundial da maratona em 2005. “Ela é muito especial. Apoiou-me e nunca teve de ir para os jornais gabar-se do que fazia. Há uns anos [disse Mo Farah em 2008], escolheu um grupo de atletas que julgava precisarem de apoio e fê-lo de diferentes maneiras. A mim pagou-me as aulas de condução, porque precisava de arranjar uma forma de ir treinar para Windsor, que era uma viagem muito difícil de comboio. Fez-me acreditar que tudo era possível”, elogiou.
E tudo foi possível. Mo Farah tornou-se o primeiro atleta da história a conseguir a dobradinha dos 5000 e dos 10 000 metros nos Mundiais (Moscovo 2013) e Jogos Olímpicos (Londres 2012). Para não falar dos Europeus, conseguindo-o em Barcelona-2010 e Zurique 2014.
Mo Farah começou a ganhar notoriedade e adoptou a famosa forma de festejar em 2012, antes dos Jogos Olímpicos, num programa de televisão. Claire Balding, apresentadora da BBC, sugeriu que fizesse um M, de Mo, com os braços, à imagem da coreografia dos Village People na música YMCA. O reconhecimento foi brutal, principalmente em Inglaterra, mas nos EUA teve de passar por dificuldades. Mesmo depois do furor olímpico, continuou a ter problemas para entrar no país, apesar de fazer de Portland o local preferencial para treinar. “Mandam-me sempre parar no aeroporto. Deve ter algo a ver com o meu nome, não imagino outra justificação”, explicou no Natal de 2012, confessando que nem quando mostrou as medalhas conseguiu afastar as suspeitas das autoridades. “Era pior quando me levavam para uma sala à parte e começavam a perguntar o que estava ali a fazer e a quantos países já tinha ido”, continuou.
O pedido de residência também foi complicado e obrigou a acções inesperadas. “Estávamos emPortland com um visto turístico, por isso tinha de abandonar os EUA e reentrar como residente. Por isso fomos para Toronto apenas por uns dias. Mas quanto lá estávamos recebi uma carta a dizer que estava sob investigação devido a uma ameaça terrorista e não podia voltar nos 90 dias seguintes. Só tínhamos mala para quatro dias e não sabíamos o que fazer.” No final valeu um amigo que o seu treinador tinha no FBI para desbloquear o caso.
Mo Farah não ignora o passado e é visto como uma referência a seguir pelos refugiados somalis em Inglaterra. Yussef Ahmad, coordenador de uma comunidade somali britânica, aponta que a principal preocupação quando chegam é adaptarem-se a uma realidade diferente. “Pode ser difícil para muitos jovens, que perdem o amor-próprio e entram no mundo do crime com comportamentos anti-sociais. Mas nos últimos anos isso começou a mudar e Mo faz parte disso. Tem sido um modelo”, aponta. Já na Somália e no Djibouti a dificuldade é outra, garante o atleta. “As pessoas são muito próximas. Ou têm todas um grau de parentesco contigo ou acham que sim. Todos dizem que são teus primos”, contou entre gargalhadas. “Uma vez fui correr na Somália e, do nada, um tipo completamente normal surge e começa a acompanhar o meu ritmo”, acrescenta.