Em “Doce Pássaro da Juventude” será Alexandra del Lago, a actriz que enfrenta o desastre de uma vida. No dia desta conversa foi Maria João Luís, a actriz que escapou ilesa a um embate no seu carro quando seguia para Lisboa, razão para um breve parênteses na habitual pontualidade. Seguimos com cuidado, mas sempre em ritmo acelerado, guiados pela condutora que se divide entre a capital e Ponte de Sor, no Alentejo, onde em 2009 fundou o Teatro da Terra, que começou esta semana a rodar uma nova novela, e que a 15 de Abril sobe ao palco do São Luiz com os Artistas Unidos. Do texto de Tennessee Williams encenado por Jorge Silva Melo para as memórias da ex-baterista de uma banda punk rock e para o voicemail do seu telemóvel.
Já lhe aconteceu um percalço deste género antes de um espectáculo?
Por acaso relativamente aos espectáculos acho que nunca me aconteceu. Também porque me preparo com muito cuidado. Nunca chego tarde ao teatro. Como moro longe de Lisboa, saio sempre bastante cedo para a cidade, para ter a certeza de que na hora do espectáculo não há imprevistos. Nunca tive assim uma situação de atraso. Bom, se não se puder mesmo ir não se vai, paciência. Ninguém morre por causa disso.
Como organiza a sua vida entre Lisboa e Ponte de Sor?
Não vou e venho todos os dias, porque tenho casa cá também. Quando tenho a preparação dos espectáculos fico mais por cá. Durante a semana viajo quando tem de ser, ao fim-de-semana estou em casa com os miúdos. Ou levo-os comigo para Ponte de Sor. Vai-se gerindo assim. Muitas vezes tenho de ir durante a semana para Ponte de Sor, quando tenho lá a criação de espectáculos.
É fácil gerir os diferentes ritmos?
Como faço sempre muita, muita coisa ao mesmo tempo, e quando não tenho nada para fazer invento, a gestão da minha vida é uma coisa que se faz quase dia a dia. Penso em tudo o que tenho para fazer de manhã, e vai por aí fora. Gere-se bem, acho eu. Também não vivo em Lisboa cidade. O ritmo é semelhante; também tenho uma casa no campo cá.
Não é um cenário de alguma lentidão para alguém tão activo?
Adoro a cidade, e então Lisboa, que é invulgarmente bonita e luminosa, vital. Não me adapto é a viver bem na cidade. Nasci perto do campo, a minha família era do campo, há uma coisa que me puxa para a lezíria, a zona oeste, as vinhas. É uma natureza muito vibrante.
A sua energia natural explicou a queda para tocar bateria?
Foi uma zona muito interessante da minha vida. Quando era miúda tinha tocado vagamente numa banda, tinha algum jeito para a bateria. Mas mais tarde, pelos meus 25, 26 anos, encontro um certo número de pessoas a fazerem aquilo que eu fazia, já no teatro profissional. Identificava-me imenso. Achei que era interessante abordar essas pessoas e pedir para entrar nos Netos do Metropolitano, que era uma companhia de teatro [dos anos 90] com música ao vivo, por onde passaram o Miguel Borges, a Paula Cunha Rosa, o Alexandre Louza, dos Terrakota. Muita gente. Era um teatro alternativo, interactivo, com punk rock, hard core, que eu adorava. Entrei num espectáculo.
Lembra-se qual era?
Não me lembro bem do título, sei que havia uma família nazi, e eu fazia de um dos animais presos numa jaula. Já andava no teatro profissional, já tinha feito “O Baile”, que me lançou imenso, e de repente tentava procurar um outro tipo de maneira de estar, até na própria vida. Isso liberta de expectativa. Para mim era muito importante não haver expectativa.
Porquê?
A ideia da expectativa era uma coisa que me afligia muito. Era muito miúda e achava que já havia muita expectativa sobre mim. Já tinha uma responsabilidade, que se veio depois a perceber, quando faço o “Popol Vuh”, sobre a civilização maia, e quando muitos colegas da minha idade me vieram dizer no fim: “O que estás a fazer à tua carreira? És uma actriz e estás aqui a fazer isto! Não podes deixar de fazer as grandes peças.”
Ainda estava nos Netos.
Penso que já não estava no grupo mas ainda estava a trabalhar com muitas pessoas dos Netos, num outro projecto, meu e do meu marido, o Pedro Domingos. Era um espectáculo lindíssimo mas muito fora. Andávamos todos nus, pintados, em andas, subíamos cordas. Fizemos só cinco páginas do livro do Ernesto Sampaio e o espectáculo tinha duas horas e meia. Era um teatro vivo, não cumpridor das expectativas do que é um espectáculo. Mesmo dentro dos alternativos era uma coisa à margem. Foi uma experiência extraordinária, pelo resultado, pelos concertos que demos. Fizemos uma banda de hard core, os Bactéria Prima.
Actuavam fora dos espectáculos?
Sim, era autónoma. Organizámos vários concertos, muitos na Comuna, com bandas alternativas de Lisboa e Almada, de Espanha. Actuámos na Voz do Operário. Éramos muito activos e trabalhávamos sem essa coisa da expectativa, que quanto a mim ainda hoje é redutora.
Não tem também um lado positivo, de estímulo?
O que quero dizer é que não podemos ceder ao que se espera de nós. Isso aprendi com muita força nessa altura, e deu-me uma sensação de liberdade enorme. Sempre fui bastante livre, talvez não livre dentro de mim mesma, porque estamos sempre presos dentro de nós próprios, e isso já basta. Já bastam as expectativas que temos quanto a nós próprios. Isso só por si é grande e natural. Não conseguimos dar à volta a isso. Quanto mais estar a obedecer ao que se espera de nós! Normalmente retira a possibilidade de ir o mais longe possível na nossa procura interior, e no desenvolvimento da nossa arte.
Como evoluiu essa expectativa com os anos?
Deixei de ligar a partir desse momento. Tenho três filhos. A sensação que tenho é que sou uma formiguinha trabalhadora mas presente de cabeça; recuso fazer parte de um carreiro. Tenho a minha liberdade e individualidade. Espero não desiludir ninguém mas estaria a desiludir as pessoas se trabalhasse só para as suas expectativas. Estaria a fazer um mau trabalho.
Aquela fase dos anos 90 foi decisiva.
Tinha a certeza absoluta que aquilo estava certo. Tinha e tenho. Foi preciso fazer esse caminho. Aquele movimento de gente que quebrava barreiras foi importante.
Ainda faria sentido agora?
Para mim, neste momento, faz sentido fazer o que estou a fazer. Já fiz, experimentei, foi óptimo, ajudou-me imenso a conhecer o lugar que ocupava dentro desta arte.
Que lugar é?
Não sei… vai indo. Na altura era um lugar caótico, o caos era inspirador. Era um olhar sobre a arte sem a veneração instituída da arte. Não, isto é só isto, nada mais que isto. Amanhã será outra coisa.
Continua a ver o trabalho dessa forma, muito terra-a-terra?
Sim, completamente, aprendi isso. Nem me passa pela cabeça que isto não seja só um caminho, que faz parte de um caminho humano, histórico. Isso sem dúvida, mas faço eu parte como fazemos todos. Sou uma profissional da zona desse caminhar. É só isto. Há uma coisa que sempre me fez confusão, como faz confusão a uma criança de cinco anos: tu nasces, vives e morres. Mas o que é um facto é que é só isto. Enquanto aqui estamos preenchemos este espaço, se possível criando. E criar é muita coisa. Tenho uma amiga que é uma excelente pintora e não expõe. É a sua opção. A humanidade fica mais pobre? Sim, possivelmente, mas não é o fim do mundo.
Imagina-se a actuar para uma sala vazia?
É possível. Fiz o “Stabat Mater” para duas pessoas.
E foi o melhor espectáculo que fiz na minha vida. Porque não actuar para uma sala vazia? Eu ensaio para uma sala vazia.
Mas há essa expectativa quando se produz um espectáculo.
Não, eu não a tenho. Gosto de ter uma sala cheia, claro, mas a minha expectativa é chegar honestamente àquilo que acho que é importante no meu percurso artístico. Quando estreio um espectáculo e sei que fui o mais longe que consegui ir, estreio em paz. E não tenho o mínimo de nervo ou ansiedade. Estou ali para partilhar com o público. Se for uma pessoa, é uma pessoa. Não posso fazer nada. Mas felizmente o teatro anda a ter muito público.
Consegue perceber se o seu público na TV se cruza com o do teatro?
Não consigo fazer uma análise, não tenho dados sobre isso. Há um público de televisão que é claro, que me fala da televisão, e um do teatro que me fala do teatro. Se é o mesmo, é possível que alguma parte sim. Mas não sei qual é a percentagem.
Já tinha a certeza do seu caminho quando se estreou com o grupo Esteiros, ainda em Alhandra?
Era uma brincadeira. Sobretudo gostava de estar com pessoas, de trabalhar os textos.
Podia ter sido uma série de outras coisas?
Podia, sim. Costureira, cabeleireira, agricultora, jardineira. Adorava. Ainda sou um bocadinho jardineira. Se na vida pudéssemos voltar e fazer outro percurso gostava de fazer jardinagem. Faço, mas tenho pouco tempo.
Era mais fácil começar agora na jardinagem do que estrear-se como actriz?
Não sei. Possivelmente há muitos milhares no mundo a quem dizes para ir para cima de um palco e tu ficas de boca aberta. Há com certeza. É assim a vida.
Acredita que há esse talento natural, sem idade, que dispensa toda uma formação prévia?
Claro que há. Se tiveres energia, que é o principal.O teatro também é energia. O trabalho do actor é de jogo energético. Depois dessa energia, se houver vontade, se gostar, fazes disso a tua profissão. Aprendes a viver imitando, representando o teu papel. Às vezes ficas um bocado perdido, não representaste bem o teu papel. No dia-a-dia é assim. O jogo da imitação é constante. Se não sabes imitar sais fora do baralho. Eu sou a profissional da representação, no fundo. Tens um percurso dentro do teu caminho como artista, ele próprio com vários graus de capacidade. Vais metendo mais peças e mais peças e de repente encaixa tudo sem precisares de pensar. É um caminho interior.
O seu caminho reencontra-se agora com o do encenador Jorge Silva Melo, nesta peça a partir de Tennessee Williams.
Sim, e é justo falar do trabalho dele porque é fabuloso. Entendemo-nos muito bem na relação actor-encenador. Trabalha há muitos anos com o meu marido, e penso que a última vez que colaborámos foi no “Stabat Mater”.
Que mulher é esta que vai desempenhar em “Doce Pássaro da Juventude”?
É muito engraçado. O Tennessee Williams escreve um bocadinho sobre ele próprio, sobre as suas ansiedades, medos. Tenho a sensação que esta mulher é também um bocadinho ele. Escreve de uma forma que é como se fizesse de Alexandra del Lago. É muito simples de representar. Ele está lá, ele escreve para a emoção do actor, as palavras são as palavras. É muito bom encontrar isso num dramaturgo. Percebe muito bem os passos emocionais. É uma mulher decadente, num processo de autodestruição, descrente da vida e das pessoas e a envelhecer prematuramente. Está num túnel escuro.
Perde algum tempo a pensar no envelhecimento?
Como sou muito despassarada e hiperactiva reajo sempre às coisas um bocado depois. Para já, passo de repente pelo espelho, vejo mais uma ruga e penso: “Então?” Não tenho muito tempo para estar ali a ver. O que me preocupa mesmo é a sinusite [risos]. Nunca tinha tido e é uma chatice. A velhice neste momento é o que menos me interessa. A sinusite deitou-me abaixo. Vê-se na minha voz ainda.
Neste momento tem os ensaios aqui no São Luiz e já está a gravar uma nova novela.
Já, arranca amanhã [terça-feira] a rodagem. É uma mulher simples, comum, que é interessante de representar. Gosto de trabalhos de composição mas os outros obrigam-me a trabalhar mais.
Será um papel muito diferente da Laura de “Sol de Inverno”.
Completamente. A novela ainda não tem título definitivo nem sei quando será a estreia. Tenho andado muito dentro dos ensaios do teatro.
O trabalho rouba-lhe muito tempo?
Tenho três filhos, imagina. Faço televisão, teatro, ainda tenho amigos, pessoas que me aguentam com esta vida toda. É difícil.
Ainda se lembram de si como a voz de uma operadora telefónica?
Acho que já não. Quer dizer, se fizer a voz para as pessoas elas riem-se. Ainda acontece, mas não associam bem. Mesmo na altura muita gente não sabia que era eu. Brincava com isso. Mandava mensagens aos meus amigos com a voz da Telecel. Eles fritavam. De repente tinham uma voz a dizer: “Então, esta noite vais jantar fora? Para jantar fora, prima dois” [imita a voz].
Foi uma boa experiência?
Repara, foi um grande contrato. Tinha 20 e poucos anos, andavam os meus colegas aflitos sem dinheiro e eu tinha pelo menos a renda de casa paga. Lá está, a liberdade também tem a ver com essa base para nos aguentarmos. Se não há, é complicado. É preciso pensar duas vezes quando se diz que os actores não deviam fazer novela. Mas há muito poucas companhias e as pessoas têm de trabalhar. Às vezes é preciso fazer e devem fazer novela, porque é uma óptima escola.
O que lhe trouxeram as novelas?
A rapidez, por exemplo. Chegar rapidamente ao que é preciso, eliminando uma data de fases que no teatro podem ser construtivas mas que para TV não são precisas. Ensinou-me essa capacidade de resposta, a não pensar de mais, a fazer e a passar para a cena seguinte.
Costuma ter a capacidade ou a possibilidade de recusar o que não quer fazer?
Tenho possibilidade e vou recusando. Preciso de ser feliz a fazer o que faço, mas sempre tive essa possibilidade. Sempre fui dizendo que não. Mesmo nova e sem dinheiro recusei coisas em televisão quando tinha a banda, porque podia recusar. Tinha o tal contrato de voz.
Alguma vez sentiu que já tinha uma vida mais estável?
Nunca tenho a vida estável. Qual vida estável? Faço uma novela, a seguir pago tantos impostos que fico sem dinheiro. Quando tens três filhos, na minha profissão, sem fortuna de família, tens de trabalhar muito. É a tal formiguinha. Há ordenados indizíveis no teatro, tiraram dinheiro às companhias. As coisas não estão fáceis.
E planos para os próximos tempos?
Ui, tantos. Estreei hoje “A Menina do Mar”, com a Maria Leite, em Ponte de Sor. A peça está deliciosa, estou muito contente. Agora temos o Tennessee Williams, um grande espectáculo que se avizinha no São Luiz. Que bom ver este elenco muitíssimo bom. Eu sou a pior [risos].