Belenenses. Um Adamastor de duas cabeças no clube dos velhos (e novos) do Restelo

Belenenses. Um Adamastor de duas cabeças no clube dos velhos (e novos) do Restelo


Saída de Lito foi a consequência esperada de uma guerra em que não houve inocentes. Por outro lado, ambiente entre clube e SAD já passou por fase muito mais complicada


A figura do Velho doRestelo foi imortalizada por LuísVaz de Camões nos “Lusíadas”, de 1572. Era uma figura pessimista, que olhava com desdém o espírito aventureiro dos descobridores que saíam em busca do Novo Mundo. De aspecto venerando, “ficava nas praias, entre a gente, postos em nós os olhos, meneando três vezes a cabeça, descontente”. Receava as mortes, os perigos, as tormentas provocadas por uma aventura dependente da glória de mandar, da vã cobiça.

O Clube de Futebol Os Belenenses foi fundado quase 350 anos depois, em 1919. Com vista privilegiada para a Torre de Belém, tornou-se rapidamente um dos clubes com mais história emPortugal e foi até 2001 o único a ser campeão nacional fora da esfera dos chamados três grandes. Mas a energia de outrora deu lugar a um envelhecimento progressivo e as dificuldades aumentaram.

Em 2009 os sócios não tiveram outra solução que não abdicar da maioria da SAD. Era isso ou o fim, acreditaram. O novo mundo de oportunidades, gastando mais do que havia, tinha deixado o clube moribundo. 

Rui Pedro Soares deu a cara como investidor e o caminho fez-se progressivamente. De uma fase em que o objectivo passava apenas por não cair para o terceiro escalão (13.o na IILiga em 2010/11 com quatro pontos de vantagem sobre o despromovido Varzim), os resultados começaram a aparecer. Duas épocas depois a subida surgiu com estrondo, ganhando a II Liga com 94 pontos em 42 jogos, com o Arouca a 21. O Belenenses estava de volta e os adeptos estavam contentes.

A adaptação à nova realidade foi difícil. Os resultados não foram positivos e, a sete jornadas do fim, Ligo Vidigal foi o bombeiro de serviço, depois de terem passado pelo banco Van der Gaag, Jorge Simão (como interino) e Marco Paulo. O 15.o lugar com 17 pontos, a dois do Paços de Ferreira, não era definitivo mas a esperança era moderada.

A estreia no Dragão não ajudou (0-1), mas a partir daí o antigo médio do clube demonstrou que também podia fazer a diferença no comando técnico: 12 pontos nos últimos seis jogos e apenas uma derrota, frente ao Sporting noRestelo.

O primeiro ponto de discórdia terá nascido aí, com um alegado atraso do pagamento do bónus de permanência. Mas era apenas o início.

A 14 de Agosto, Lito Vidigal acusava o presidente Rui Pedro Soares de ter ignorado as sugestões de contratações e ter agido por conta própria. Os adeptos estavam com Lito Vidigal.

Luciano Rodrigues tem 33 anos e faz parte de uma família com o Belenenses no coração: tanto o pai, de 69, como os filhos, de cinco (“absolutamente fanático”) e dois anos. “Era visto pelos sócios como um cavaleiro, um aliado que lutava contra um investidor que tomou de assalto o clube. Mas quem o pôs lá fomos nós em 2009, foram os sócios.”

Os desentendimentos somaram-se durante a época, criando um Adamastor de duas cabeças, um monstro que poderia ter sido evitado e impedido que a situação chegasse a um ponto irreversível. “Há culpa das duas partes. A guerra foi pública e Lito esticou demasiado a corda. Ele é um empregado, Rui Pedro Soares é o patrão.”

O Belenenses sofreu de superação das expectativas. Com dez jornadas, o clube era quarto classificado com 20 pontos – mais três que o Sporting – e a fasquia aumentou. Rui Pedro Soares queria mais e os adeptos também. “A massa associativa é mesmo assim.

A permanência está garantida e pensa-se na Liga Europa.Se calhar se estivéssemos em quarto já se queria a Liga dos Campeões.” Lito Vidigal mantinha o alerta para as carências do plantel, Rui Pedro Soares preferia lembrar uma lógica economicista: “É preferível estar na Liga Europa e cair à II Liga a estar dois anos na primeira divisão sem ir à Europa.”

A relação entre os dois atingiu um ponto sem retorno e o técnico foi substituído por Jorge Simão esta semana. Na apresentação, Rui Pedro Soares teve a companhia do presidente do clube, Patrick Morais de Carvalho. Se no passado a relação entre as duas entidades foi muito problemática, as eleições de Outubro marcaram uma diferença.

Em declarações ao i, o novo presidente eleito destaca a necessidade de remarem para o mesmo lado. “Enquanto líder, desempenho uma posição de responsabilidade e trabalho para encontrar soluções que possam conduzir a equipa ao sucesso. O clube quer contribuir para encontrar uma solução de compromisso”, conta. No caso de Lito Vidigal, o objectivo passa por resolver o litígio existente sem ser necessário recorrer aos tribunais.

O presidente do clube percebe as reticências que continuam a existir perante a perda da SAD. “Quando um investidor chega a um clube munido de um cheque demora muito tempo a assimilar a filosofia do clube. E o Belenenses tem uma massa associativa muito especial. É um clube com 95 anos, com uma história muito grande e possivelmente as decisões poderiam ser diferentes se quem tivesse o poder fosse gente com passado no clube.”

Independentemente disso, não há qualquer vontade de continuar a temer e a criar adamastores onde eles não existem. “A SAD também é nossa, somos accionistas e temos um administrador designado. O interesse é sempre fazer parte da solução”, reitera Patrick Morais de Carvalho.

A solução agora já não passa por Lito Vidigal. Luciano Rodrigues garante que os resultados não pioraram assim tanto e destaca os nove pontos conquistados nas últimas seis jornadas, com um jogo frente ao Sporting pelo meio.

O sexto lugar com 36 pontos até poderá garantir uma vaga europeia. E aí todas as gerações de adeptos do clube do Restelo ficarão satisfeitas. Dos velhos – não os de Camões – aos mais novos.