O i continua a celebrar a Semana Internacional do Cérebro, desta vez com uma conversa sobre a memória. O psiquiatra Carlos Nunes Filipe fala do lugar da identidade e dos sinais a que devemos estar atentos.
Quantos gigas de memória temos?
Se quiséssemos quantificar não seriam gigas, talvez megas. Em termos de bits e bytes temos menos que qualquer portátil e iPad. Mas não faz sentido quantificar…
Porquê?
Não temos ficheiros e gavetas como um computador. Quando lembramos alguma coisa não estamos a aceder a informação, estamos a reconstruir. Por isso é que nunca nos lembramos duas vezes da mesma coisa e da mesma maneira. Se lhe disser que pense numa maçã, a imagem que vem à sua cabeça será diferente se estiver ou não com fome, se for Inverno ou Verão. Pode ser verde ou encarnada, crua ou assada.
O que lembramos não corresponde necessariamente a coisas concretas?
É sempre uma reconstrução. Há um exemplo bastante comum: ao voltarmos à nossa sala do primeiro ciclo achamo-la ridiculamente pequena. A memória que tínhamos era uma projecção com base nos nossos afectos e percepção da altura. A memória não é um registo. Quando muito, à semelhança da música, guardamos a pauta e não a gravação. E é mais uma pauta de jazz que de música barroca, ou seja, com grandes indicações mas com margem de improviso. O que guardamos não são os factos mas códigos que nos permitem reconstruir esses factos.
Se não são os factos, porque é que nos lembramos mais facilmente do que almoçámos ontem e não há um mês?
Isso está relacionado com haver diferentes tipos de retenção de informação. Tendemos a considerar que existem três níveis que comunicam entre si, sendo o primeiro o da memória sensorial.
Por exemplo?
Se olhar para uma luz e desviar o olhar continuo a ver uma pintinha luminosa. É uma memória que fica só nos receptores de retina. Depois existe a memória de curto prazo, que também se chama memória de trabalho. É a que usamos quando estamos a desempenhar uma tarefa e que nos permite executar as coisas de forma sequencial.
Como?
Se eu estiver a fazer um bolo guardo na memória se já juntei o açúcar às gemas e à farinha para não o juntar segunda vez. Esta é a memória mais afectada nas pessoas com doença degenerativa, nomeadamente Alzheimer.
Qual é a duração desta memória?
Minutos, horas. E é preciso ter presente uma coisa: vamos passando de uns níveis para outros através de um processo de incorporação. Há uma altura em que seleccionamos informação que fica retida na nossa memória de curto prazo mas depois nem toda vai para a memória de longo prazo, que é o terceiro nível, que dura mais tempo.
É a memória selectiva.
Sim. A questão é esta: neste momento há uma porta que se fecha lá fora, mas eu posso estar de tal forma envolvido nesta conversa que se me perguntar quantas vezes bateu a porta não faço ideia. Isto porque a incorporação está ligada aos nossos mecanismos de atenção, que podem ser modulados através da nossa vontade mas também podem ser despertos por factores emocionais e até neurovegetativos. Por exemplo, se apanhar um susto fico mais alerta para determinadas coisas e ignoro outras. Bom, mas isto responde finalmente à questão da razão por que me lembro do que almocei ontem e não do que almocei há uma semana, porque nem sempre a informação que passa pela nossa memória sensorial é incorporada na de curto prazo e na de longo prazo.
Há memórias que incorporamos sem ter consciência delas?
Temos memórias de episódios e acontecimentos. São memórias conscientes. Mas depois há memórias de procedimentos que não são conscientes. Por exemplo perícias motoras: uma pessoa não se esquece de andar de bicicleta mesmo que não lembre todos os movimentos.
Só as perícias motoras são inconscientes?
Não. Outro exemplo é a memória semântica. Sabe o que é um cão mas se lhe pedir que me defina cão não consegue dar-me um algoritmo. Dirá que tem quatro patas e pêlo, mas isso vale para outros animais, e sabe que está a falar de um cão. Porquê? Porque, fruto da aquisição de informação e da experiência, temos incorporado o metaconceito do que é um cão ou uma arma de fogo ou uma ave. E esta memória semântica ou de conceito aplica-se também a situações: é o que nos permite identificar instintivamente uma situação de perigo antes de termos consciência dela.
E nesse sentido a memória não é só o que nos permite evocar o passado mas também agir?
Precisamente. O que é curioso é que os diferentes tipos de memória de que estamos a falar têm substratos biológicos tão diferentes que numa lesão ou doença pode haver a perda de um só tipo destas memórias ou até de mecanismos. Veja-se o que acontece em alguns casos de autismo. Normalmente temos uma construção mental que se baseia em módulos de processamento local ligados a módulos mais complexos. É como se estivéssemos permanentemente a fazer zoom out numa paisagem. O primeiro nível é a árvore ou o ramo. Se me afastar, vejo a árvore e consigo dizer se é frondosa ou não. E se me afastar mais vejo a floresta densa, o chão. Se me afastar ainda mais percebo que estou na floresta Negra e penso em lendas ou que estou na Alemanha, que é um país com determinadas conotações políticas e sociais. E a certa altura quando evoco floresta Negra não penso no ramo mas num nível de elaboração muito mais complexo. Isso implica a tal metaconceptualização e uma passagem de informação rapidíssima entre áreas de processamento.
O que acontece no espectro do autismo?
Não tendo essa capacidade, há memorização, mas a pessoa lembra-se só da árvore ou só da folha. E pode parecer extraordinário se disser que na quarta árvore a contar da esquerda há 1532 folhas. Essa memória extraordinária não revela uma capacidade mas uma incapacidade, já que não consigo generalizar ou usar essa informação em contextos diferentes.
Sem ser numa situação de doença, dizemos que há pessoas que têm boa memória e outras não. Porquê?
Uma das causas mais comuns da dita falta de memória não tem a ver com a parte da evocação mas da incorporação. Para incorporar informação, como já disse, tenho de a seleccionar. O primeiro tempo da memória está dependente da atenção. Se tiver uma atenção dispersa ou dificuldade em concentrar-me – o que pode ser patológico ou biológico (por exemplo se tiver sono ou fome) ou psicológico (se estiver muito ansioso ou obcecado) – não tenho capacidade de fazer o tal filtro de seleccionar informação relevante. As brancas dos exames têm a ver precisamente com isso: com estar obcecado com o insucesso.
Mas como é que há pessoas que conseguem acumular tanta cultura geral?
Nesse caso falamos de uma grande memória episódica, de factos, de acontecimentos localizados no espaço e no tempo. Mas a memória episódica é apenas uma ponta do icebergue da memória, há muito mais que isso, como já dissemos, por exemplo a memória semântica ou a memória de procedimento. Há pessoas melhores numas coisas e outras noutras.
Pôr creme na escova de dentes é uma falha na memória de procedimento?
Será simplesmente distracção.
A que sinais precoces de perda de memória devemos então estar atentos?
Sobretudo a perda de capacidades que se tinha. Não se lembrar sistematicamente de coisas que supostamente devia saber, nomes familiares. Agora se me perguntar o dia da semana quando estou de férias e me enganar não significa um processo degenerativo, apenas que me estou nas tintas. A memória tem a ver com um esquema de prioridades, quer na incorporação quer na invocação. De resto, gosto do termo “preocupado”: se estou pré-ocupado, as coisas podem passar-me ao lado.
E numa sociedade em que vivemos mais tensos e preocupados, podemos estar a pôr em causa as nossas memórias? Vão ser diferentes dos nossos avós?
Eventualmente serão, mas não sei..
Serão menos detalhadas? Quando ouvimos os nossos avós contar experiências da infância parece que não temos a mesma memória…
Talvez, mas não me espanto que isso lhe venha a acontecer. Com a idade vamos incorporando menos informação nova, o que nos permite o acesso mais fácil a informação mais antiga.
A internet ameaça a nossa memória?
A internet enquanto colecção de factos não acho. Poderá ter impacto em termos cognitivos se ajudar a pessoa a não pensar. Em termos cognitivos uma coisa que sabemos é que o cérebro, como qualquer órgão, atrofia quando não é usado.
Intriga-o como será o cérebro das novas gerações?
Não penso na internet mas no ensino, no impacto do facilitismo. Se em vez de bife só comer hambúrguer arrisca-se a que as gengivas não tenham a mesma força. É a mesma coisa no cérebro. Além disso existe até um resultado intrínseco do esforço, de superar as dificuldades, que implica a pessoa projectar-se no futuro e lutar por uma recompensa. O facilitismo compromete a elaboração de raciocínio.
E coisas que achámos até um bocado retrógradas, como repetir a tabuada, fazem sentido?
Sim, é um meio de incorporação de informação e aprendizagem. De facto há todo um trabalho de memorização que se perdeu muito nas escolas. Não quer dizer que fizesse muito sentido decorar estações e apeadeiros da linha do oeste, mas se calhar deitou-se fora o bebé com a água do banho.
O que se poderá ter perdido?
Acho que se perdeu a capacidade de pensar, de reflectir, de protelar a resposta, de elaborar o pensamento.
Somos mais formatados para reagir?
Sem dúvida. Houve uma perda em função de uma eventual eficácia, numa ânsia que se calhar pode dar o efeito oposto.
Há quem diga que a memória serve para não cometermos erros do passado.
Acho que a memória não serve fundamentalmente para isso. Serve para darmos sentido ao presente. Só conseguimos traçar uma orientação para o futuro se soubermos de onde viermos, se tivermos inscrito na memória o nosso trajecto. Se tivermos a inscrição dos erros mas também das coisas boas, até porque há erros crassos que mais tarde se revelam certos.
Portanto pior ainda: arriscamos vidas vazias de sentido?
Justamente. O principal sentido da história e da memória, individual e colectiva, é dar um sentido ao presente.
Sente esse esvaziamento?
Não sei mas é um risco, por vários motivos. Nos “Cem Anos de Solidão” há um episódio curioso: as pessoas em Macondo deixam de dormir e começam a perder as memórias, primeiro as mais recentes e depois as antigas. Chega-se a um momento em que isso leva a uma perda de identidade. É uma descrição muito interessante e verosímil: as memórias têm de ser consolidadas e arquivadas. Pensa-se que durante o dia acontece um pouco o que se passaria numa repartição pública:_sempre a dar entrada papéis. Quando as portas fecham é preciso arrumar a informação, ver o que é para guardar e o que vai para o lixo. Uma boa noite de sono é fundamental para uma memória saudável.
E o que mais recomenda? O que diz dos suplementos de que se ouve falar para aumentar a memória?
[Risos.] São óptimos para quem os vende. Não fazem nada. A maior parte são suplementos alimentares que se uma pessoa tiver uma dieta adequada tem exactamente o mesmo resultado. Não se exercita a memória, exercita-se o raciocínio. É preciso perceber que é preciso manter o cérebro activo, com um projecto, com um sonho, com uma boa leitura ou conversa. Ninguém fica melhor se passar a vida a decorar os números que saem na lotaria ou as capitais dos países.
O que é que o intriga mais na memória?
O facto de sem ela não existir identidade, eventualmente nem consciência, na medida em que a consciência é eu saber o aqui e o agora na minha história. É sem dúvida das coisas mais importantes que temos.
Assusta-o a ideia de perder a memória?
Sem dúvida.
Mais por ser psiquiatra?
Se calhar menos. Não tem nada de transcendente e filosófico: quanto mais sabemos mais percebemos que é impossível saber se isso nos vai acontecer.
Há alguma coisa que faça todos os dias com essa preocupação?
Felizmente ainda estou ocupado. E escrevo com regularidade, leio constantemente. Mas também lhe digo que vivo muito contente por ter uma profissão que me permitirá continuar a trabalhar enquanto a cabeça funcionar. Dá-me uma certa tranquilidade.