O homem devia ser pago para arranjar problemas porque o normal é que recolha sucessos em tudo o que faz, mesmo que vá contra as normas. Aliás, vai na volta e a BBC, sonsa (e consciente disso), como qualquer boa defensora dos costumes e das tradições, não fez mais do que maquinar uma manobra de marketing nos bastidores dos estúdios: “Vamos aqui só arranjar uma celeuma que envolva o camarada Jeremy, que estamos a precisar de um boost (assim mesmo, em estrangeiro) nas audiências, os documentários são bons mas não pagam a máquina toda.” Ou então é apenas mau feitio – e se assim for, paciência, toda a gente tem direito a andar entre os vinagres de quando em vez. Contas feitas, um dia depois de ter sido suspenso, o apresentador de “Top Gear” contava com 300 mil assinaturas de fãs que pediam o regresso do melhor anfitrião de programas de automóveis. Se “Top Gear” é a televisão sobre rodas que vale a pena ver, a culpa é deste amante de BMW pouco dado às auto-estradas britânicas. Se alguém pode carregar o carimbo de “o maior”, Clarkson está na frente, pole position, volta mais rápida, bandeira de xadrez, por aí fora.
E afinal o que é que decorre? Decorre que, ao que parece, Jeremy Clarkson teve uma discussão com um dos produtores da série. Acreditando noutros comentários, o apresentador terá agredido o dito executivo. Se o episódio desagradável envolveu contacto físico ou não, é detalhe que será confirmado a seu tempo – diz a BBC que há uma “investigação a decorrer”. O que é facto é que a televisão britânica suspendeu Clarkson e tratou de avisar o povo em geral de que amanhã, domingo, não há “Top Gear” para ninguém. Mais: ao que parece vão ficar congelados os dois episódios seguintes, os últimos da presente temporada do programa. A BBC perdeu a paciência, é assim que se traduz tudo isto. Sobretudo depois de ter avisado o senhor Jeremy de que algo do estilo poderia acontecer. A estrela tem dias difíceis, faz as suas exigências, e volta e meia é apanhado em falso. No ano passado foi gravado em vídeo enquanto numa das suas brincadeiras fazia um comentário racista. Toda uma novela de histórias sobre ouvidos com pouca tolerância ao humor especial de Clarkson.
O grande problema é que a BBC está metida num dilema. Em causa está uma das figuras mais populares da televisão, toda ela, a nível mundial.
E no meio disto há audiências e publicidade.
E de onde vem toda esta fama? Precisamente dessa mania de Jeremy Clarkson de ser mais engraçado que os outros, de ter o que é preciso para que o queiramos ver na TV, para que o queiramos ler no jornal em que escreve (por estes dias tem um espaço reservado no “The Sun”). Porque na verdade é mesmo mais e melhor que a concorrência, pelo menos no que diz respeito a tudo o que mete motores em particular ou sarcasmo em geral. Uma teoria da origem desta personalidade pode estar nos primeiros 30 anos da vida de Clarkson. Fez o que tinha de fazer de acordo com os cânones ingleses. Nasceu em 1960, resultado do boom do pós-guerra, brincou ao que tinha de brincar enquanto os Beatles e os Stones mudavam o mundo, foi expulso de uma das escolas que frequentou porque não cumpria as regras e dedicou-se ao jornalismo depois de vender ursos Paddington (a experiência durou pouco).
Em meados dos anos 80 começa a escrever sobre automóveis; tudo corria bem, portanto. Até que se casa em 1989, com Alexandra James. Conta a história que James o trocou por um dos melhores amigos do marido, seis meses depois da boda. Apesar disso, Alexandra, hoje de apelido Hall, a propósito do segundo divórcio de Clarkson, afirmou há tempos ao jornal “Telegraph” que Frances Cain “merecia todo o dinheiro de um eventual acordo de separação só por aturar aquilo”. “Aquilo”, claro, é o nosso amigo Jeremy, que terá decidido que rir é o melhor remédio. É no fim dos anos 80 que começa o seu percurso como apresentador do “Top Gear”, ainda em formato respeitável. Precisou de algum tempo para ganhar espaço e confiança, o à-vontade necessário para nos atirar umas verdades à cara. Não que dizer mal ou bem de carros, sem reservas, influenciasse comercialmente os resultados dos mesmos, mas mudou em definitivo as audiências de um programa que ameaçava desaparecer.
Em 2002 Clarkson propõe um novo formato para o programa, em conjunto com James May e Richard Hammond. Os automóveis continuavam a ser os protagonistas mas partilhavam o espaço com humor, produções arrojadas e caras, muito caras (perguntas como “e que tal se agora fizéssemos uma corrida em estradas da Patagónia?” podem aparecer a qualquer momento). Tudo se tornava possível, mesmo que envolvesse destruir viaturas e competir com caças a jacto. Jeremy, o jornalista, virava piloto sem juízo, visto em todo o mundo: 350 milhões de espectadores, 3 milhões de assinantes no YouTube, 1,7 milhões de leitores da revista “Top Gear”. Jeremy, o rosto do programa mas também um dos sócios da produtora. Até agora, 170 programas, desde 2002, uma história sempre acompanhada de episódios de mau comportamento. Os putos e os carros, nada a fazer. Pelo caminho, perto de 20 milhões de euros por ano, é o que vai facturando. Para ter Lamborghinis e Aston Martins na garagem é preciso fazer contas. Dizia no ano passado a Chris Evans, no programa “Breakfast Show” da BBC2: “Ou tens um emprego ou vais trabalhar como leiteiro, era isso que fazia. Vais e fazes uma coisa diferente. Podes sempre ser colunista de jornal.”
Quando escrevemos este texto, a petição para o regresso de Jeremy Clarkson tinha reunido as tais 300 mil assinaturas. Hoje, sábado, os números devem ser outros. O jornal “The Sun” citava a meio da semana o apresentador: “Estou a beber uma cerveja fresquinha, à espera que a poeira assente.” É uma corrida como outra qualquer, apenas mais uma.