Manuel Valls é a mais completa tradução do fracasso da alternativa Hollande, o homem que ia chegar à presidência de França, acabar com a austeridade e obrigar a política europeia a arranjar uma nova direcção. Valls, detestado pela ala esquerda do PSF, não desiste da sua ideia de abandonar de vez a palavra “socialismo” e instituir reformas parcialmente iguais às que a direita sustenta. O seu modelo é Tony Blair, que inventou o New Labour
António Costa não quis Manuel Valls no congresso do PS. Num acontecimento em que Costa empregou todos os meios para agradar ao coração da esquerda, qualquer sinal da existência de Manuel Valls, o socialista que quer apagar a palavra “socialista” do nome do PSF, funcionaria como um contratorpedeiro. E assim Valls foi apagado do glorioso quadro de líderes socialistas europeus, do italiano Renzi ao espanhol Sánchez, com que António Costa sonha fazer uma “frente” na Europa – naquele contexto, Manuel Valls era evidentemente persona non grata.
O pensamento político de Valls não é propriamente uma novidade numa corrente política que já produziu Tony Blair e a terceira via, santificados modelos para o primeiro-ministro francês. Mas nem sequer Blair, que cortou ferozmente com o socialismo tradicional do Partido Trabalhista, quis acabar com a palavra “Labour” no nome do seu partido. Acrescentou-lhe um “new” e vendeu, com sucesso eleitoral, “o New Labour”. Valls é, e é ele que o diz, “mais pragmático”: quer mesmo mudar o nome do Partido Socialista Francês. Se já não é socialista, para quê insistir?
Valls lançou a ideia em 2007, insistiu em 2011 nas primárias das presidenciais em que teve um resultado mínimo e em Outubro passado voltou à carga. Martine Aubry, a ex-líder do PSF, já o mandou sair do partido, uma vez que não gosta da palavra “socialista”. Valls recusou a contraproposta e é hoje primeiro-ministro, com metade do partido a fazer-lhe contravapor. Em entrevista ao “Obs” – o novo nome do histórico “Nouvel Observateur” – Manuel Valls faz a sua defesa de uma esquerda “pragmática, reformista e republicana”, “porque a ideologia conduziu a desastres”. O jornalista faz-lhe notar a sua recusa em chamar “socialista” à sua esquerda. A resposta de Valls é o seu programa: “Uma esquerda pragmática, reformista e republicana”, que “pode morrer se não se reinventa.” Não diz a palavra “socialista”, ele já não a quer, o socialismo acabou e o partido, segundo Valls, é já outra coisa qualquer. Quando é acusado de ser o “assassino” do “socialismo” – e isso acontece muitas vezes –, Valls responde assim aos acusadores: “Quando a esquerda se mantém curvada sobre o passado, sobre os seus totens, deixa de ser fiel ao ideal de progresso e naturalmente a si mesma.” Acha que é um insulto chamarem-lhe “traidor” da esquerda, mas devolve as críticas: aqueles que o insultam são “os que estão ultrapassados”. “A esquerda que renuncia a reformar, que escolhe defender as soluções do passado mais do que resolver os problemas do presente, está equivocada em relação ao combate”. Faz uma pergunta retórica para a qual tem a resposta pronta: “Existe alguma novidade na política de negligenciar o défice e aumentar impostos? Não, isto foi feito sistematicamente durante 40 anos e não funcionou.”
Manuel Valls é de certa forma a mais completa tradução do fracasso da presidência Hollande, o homem que fez campanha a prometer o fim da austeridade – e um novo rumo na política europeia – e conseguiu zero. Valls e o seu mais recente ministro da Economia, Emmanuel Macron, ex-banqueiro, dividiram quase até à cisão o grupo parlamentar socialista na Assembleia Nacional francesa. Há poucos dias, o último pacote legislativo de liberalização do mercado de trabalho foi feito por decreto – uma forma de escapar aos riscos de chumbo no parlamento.
Em recente entrevista ao “El País”, Manuel Valls defende ardorosamente a sua esquerda, aquela que, por sua vontade, seria libertada do qualificativo “socialista”. “A esquerda reformista, social–democrata, tem perante si verdadeiros desafios em toda a Europa, em particular por causa dos efeitos da globalização e da crise do Estado do bem--estar. Num mundo que está a mudar, nem sempre tem conseguido encontrar as respostas adequadas.” Entre os seus desejos de ruptura, Valls defende alguma continuidade: “Os valores continuam os mesmos: indignação perante a pobreza, as desigualdades.”
A “The Economist” chamou-lhe uma vez “o Sarkozy socialista”. A ideia de que Valls é uma espécie de “Sarkozy de esquerda” pegou, mas o primeiro--ministro não se importa lá muito de ser comparado com o anterior presidente: foram ambos ministros do Interior e defenderam políticas muito semelhantes, nomeadamente o desmantelamento dos acampamentos ciganos e o aumento dos efectivos policiais – aquilo a que a “esquerda antiga” costuma chamar “política securitária”. De resto, Manuel Valls insiste muito que “a esquerda pode morrer se não se reinventa, se renuncia a governar, a participar na construção europeia, se renuncia ao progresso”. “Tenho uma convicção: a esquerda nunca é tão forte como quando se dirige a todos e não só a uma parte da população.”
Tal como Sarkozy, filho de pai húngaro, também Manuel Valls é um francês com origens estrangeiras. Filho de pai catalão e de mãe suíça-italiana, Valls acabaria por nascer em Barcelona. Apesar de ter vivido sempre em França, só se tornaria cidadão francês aos 20 anos, três anos depois de ter começado a militar no Partido Socialista Francês, onde subiu todos os degraus do aparelho, manifestando sempre a sua absoluta lealdade a vários primeiros-ministros de diferentes tendências socialistas – de Michel Rocard a Lionel Jospin, até acabar como director de campanha de François Hollande. Em 2011, Valls tinha sido adversário de Hollande nas primárias para as presidenciais, de onde tinha saído com uns humilhantes 6%, e foi riscado da corrida.
A esquerda precisa de optimismo
Dois anos antes de se apresentar às primárias para as presidenciais, Valls tinha fundado um movimento chamado A Esquerda Precisa de Optimismo, com o objectivo de “renovar profundamente as ideias e os projectos da esquerda”. Para ultrapassar “os bloqueios ideológicos e suscitar uma nova esperança”, o clube de Valls defendia a necessidade da “emergência de uma esquerda moderna, popular e ambiciosa”. Valls achava o mesmo que hoje “as forças do progresso” não se souberam adaptar depois da queda do Muro de Berlim e não foram capazes de enfrentar as mutações do capitalismo e seus derivados”, que culminaram na crise financeira internacional. “A esquerda não se soube adaptar às evoluções da sociedade francesa do século xxi, aos novos modos de vida, à emergência da internet, etc.” Valls e a sua ideia de “optimismo” tinham como pontos essenciais a “educação como fonte privilegiada de emancipação”, “os valores da República e a reabilitação da moral republicana, da laicidade e da igualdade de oportunidades”, “a reinvenção do modelo social francês”, “a reconciliação com o mundo das empresas, com a criação de riqueza para que se possa de novo estar em condições de partilhá-la”. Valls, já o disse muitas vezes, acha que esta é a via para conter o crescimento dos extremismos, nomeadamente o da extrema-direita francesa. Na realidade, ao fim de algum tempo no poder, Marine Le Pen continua a liderar as intenções de voto, com 30%, com a UMP do renascido Nicolas Sarkozy com 28% e o partido que continua a ser socialista apenas com 20%. Mas na realidade, se François Hollande recuperou popularidade depois dos atentados ao “Charlie Hebdo”, Manuel Valls não perdeu hipóteses de vir a suceder a Hollande no Eliseu – que foi sempre, quando concorreu às primárias, o seu objectivo. O risco de Hollande se ficar por apenas um mandato e Valls avançar para o Eliseu é uma hipótese que está em cima da mesa.
Valls, 52 anos, tem quatro filhos e é casado com a violinista Anne Gravoin. No ano passado, a revista “Elle” fez uma sondagem em que concluiu que 20% das mulheres francesas estavam disponíveis para ter um “affaire tórrido” com Manuel Valls. Anne Gravoin, segunda mulher de Valls, achou graça e confessou-se “deliciada” com a sondagem. Nessa altura Valls era ministro do Interior e já suscitava algum interesse para além do estritamente político entre as eleitoras francesas. “Eu sou amoroso”, foi a reacção de Manuel Valls à sondagem em que 20% das eleitoras se manifestavam interessadas numa “aventura” com o político em ascensão.
Valls já tinha tido um flirt com Anne nos anos 80, mas reencontra-a quando era presidente da Câmara d’Evry – cargo que ocupou durante muitos anos. Anne Gravoin convida Valls para assistir a um concerto e Valls demora muito tempo a decidir-se a aparecer. Mas, segundo informa a “Elle” francesa, depois do primeiro concerto de Anne a que Valls assistiu, as coisas acabaram por ser muito rápidas. Casaram-se em 2010 na câmara de que ele era presidente. Valls também era grande amigo de Valérie Trierweiller, a ex-mulher de François Hollande, cuja separação – depois de uma reportagem em que se via Hollande, de mota, a sair do apartamento da actriz Julie Gayet – deu origem a uma indescritível roupa suja e a um livro escrito por Valérie sobre François: “Obrigado por este bocadinho.” Se for contra Hollande, Valérie apoiará certamente a ascensão de Valls ao Eliseu.