É muito mais que um galã de novelas, embora na televisão lhe ofereçam o papel com alguma frequência. Encara-o com naturalidade, sem pensar muito no assunto. Prefere perder tempo, por exemplo, a absorver o conhecimento que o teatro lhe dá. O mais recente vem de “Pirandello”, peça que protagoniza e que estreia na quinta-feira no Teatro D. Maria
No novo trabalho que o leva ao palco há uma parte em que o nome das personagens são trocados pelos dos actores. É o teatro dentro do teatro, e mais um desafio para Albano Jerónimo, que tem repartido a sua carreira entre os vários géneros da representação. A profissão que abraça de corpo e alma dá-lhe o privilégio de ser pago para se educar. Pesquisa o máximo que pode sobre cada autor, mas gosta de receber as visões de quem o dirige e encena, lugares que estão no seu horizonte se resolver parar e mudar o sentido do percurso. Onde não há desvio é no envelhecimento, para o qual está preparado. À maturidade alia-se a paternidade, que lhe trouxe uma nova perspectiva sobre tudo e um papel que nunca mais o vai deixar.
Na peça “Pirandelllo”, feita a partir do romance “Ele foi Mattia Pascal”, a história gira em torno de um homem que é dado como morto e vê nisso a oportunidade de começar uma nova vida. Representar é para si uma forma de viver várias vezes?
Esta peça remete exactamente para esse exercício da morte vista aqui como renascimento e em todos os trabalhos que faço tento encontrar esse ponto de partida comum, uma espécie de tábua rasa. Sim, todas as peças que faço são um renascimento. Neste caso em particular é uma oportunidade única de experimentarmos o exercício da ficção sobre isso, sobre estar morto e de repente ter uma nova possibilidade, uma nova vida.
À semelhança da história da peça, durante a sua carreira de actor alguma vez pensou parar e recomeçar a vida num sentido diferente?
Sim, encaro sempre essa perspectiva como uma forma de não cristalizar. Isso acontece-nos na vida, quer a gente queira quer não. De certa forma, é um privilégio essa possibilidade de recomeçar. Obviamente são sempre momentos de transição, mas também de conhecimento. Interessa-me e procuro isso na minha vida. Sim, às vezes apetecia-me parar.
E teria condições para o fazer?
Uma coisa boa da profissão é que a determinada altura percebes que não é só isto que consegues fazer, e felizmente consigo ter essa possibilidade, se quiser parar e fazer outra coisa na vida posso. Isso para mim é bom, porque ao mesmo tempo também valorizo o que estou a fazer. Mas gosto dessa ideia de recomeço, em que tudo volta à estaca zero, os valores a ser baralhados e se volta a escolher, ou ser escolhido. Acho que é fundamental para não se ficar velho.
Que outras paixões tem além da representação?
A minha escola vem das ciências, a minha ideia era ter sido fisioterapeuta. Hoje em dia, obviamente, vejo mais uma extensão daquilo que faço actualmente, com uma perspectiva de exterior, a encenar ou a realizar.
Ter sido pai também foi uma oportunidade de recomeço?
Sem dúvida. É um dos momentos mais fortes da minha vida, se não o mais forte. A minha perspectiva sobre a minha vida mudou, e logicamente sobre o meu trabalho também, sobretudo na urgência de fazer as coisas. Hoje quando aceito determinado trabalho é porque tenho mesmo razões para aceitar aquilo. Se estou longe das pessoas que mais gosto, que são a minha família, isso tem de ter um preço. E o preço não é monetário, é aquilo que conseguirei tirar desse trabalho. Isso muda a minha perspectiva, passo a ver o mundo pelos olhos da minha filha, e tudo isso é uma outra vida, um renascimento. Espero ter a humildade e a inteligência de me aproximar cada vez mais do olhar de quem sabe mais que eu. E neste caso a minha filha sabe mais que eu.
Disse, de resto, quando estava prestes a ser pai, que este seria o seu maior e mais importante papel. Que tal se está a sair nele?
É muito difícil dizer, é sempre uma gestão muito delicada e diária, de 24 horas em 24 horas. Este papel eu não estou a desempenhar…
É um papel que nunca acaba.
Sim, nunca acaba. Quando disse isso já deve ter sido há algum tempo, estava longe da consciência que tenho hoje e daqui a três anos estarei muito longe do que estou agora aqui a sentir. Acho que é uma possibilidade única de desceres do teu ego e te pores numa posição muito mais interessante, que dá uma perspectiva muito mais próxima dos outros e sobretudo de ti e do teu corpo. Não sei se estou a fazer bem este papel, mal não estou, tenho consciência disso. Desde que ela continue a seguir o seu caminho, poderei estar descansado em relação a este papel.
O teatro dá mais do que tira de um actor?
Dá-me mais, precisamente pela possibilidade de conhecimento, de ir beber a vários sítios, mas ao mesmo tempo também é extremamente exigente. À medida que o tempo vai avançando e vou ficando mais velho as coisas vão tendo cada vez mais dificuldade, porque o meu conhecimento e a minha noção das coisas são diferentes, a minha urgência em relação a elas também. O teatro impõe uma maneira de gerir muito particular, não é fácil isto da repetição, este contacto directo com o público. E em Portugal, não se consegue viver somente com o vencimento do teatro, tem de se conciliar com outra coisa qualquer. Mas dá-me mais do que tira.
Foi também por isso que regressou às novelas?
A televisão tem várias coisas boas. O ritmo alucinante também pode ser bom para o actor porque dá uma ginástica e uma agilidade muito boa, e, obviamente, há o lado monetário. Não há nenhum sítio que pague de uma forma tão confortável como a televisão. Esse é um dos motivos, digo-o com todo o respeito, mas também creio que a televisão é necessária ao actor para entrar noutra forma de fazer as coisas.
Boa parte do público que o conhece da televisão e das novelas associa-o à imagem de galã. Isso incomoda-o?
Não, nem sequer penso nisso. Encaro as telenovelas como um projecto como outro qualquer. Sei que em televisão existe a tendência, de certa forma, de enquadrar aquele actor num certo tipo de papéis e, dentro da dramaturgia de uma novela, insiro-me num determinado núcleo porque posso contribuir com as minhas características para uma dada acção. Vejo sempre isto como quem me convida para fazer a novela pensa que eu sirvo melhor o produto desta forma, por isso tento sempre afastar-me dessa maneira de ver as coisas porque é redutora. Um galã ou um vilão pode ser muito mais do que isso.
Qual é o calcanhar de Aquiles da profissão de actor?
Muita coisa. É extremamente complicado ser artista ou querer desenvolver algum projecto em Portugal. Nós não andamos a viver em saldos, estamos em liquidação total. Temos de nos reinventar, e isso é um problema, que tentamos sempre reverter em vantagem. É uma luta que questiono se é necessária. A meu ver não. Em Portugal, nesta profissão, o calcanhar de Aquiles continua a ser que cada vez que muda o governo, a cor política, as dificuldades mudam. Não há uma perspectiva de continuidade, de aproveitar o que está feito para continuar a desenvolver. Está-se sempre a começar.
Segue algum método no seu trabalho?
O meu método é exactamente não ter método. Tenho a felicidade de até hoje ter trabalhado com muitos encenadores e olhares diferentes. E não me interessa ir com ideias já formatadas Esse desafio de estar disponível para receber outra coisa que não é normalmente o meu universo é o meu foco, tentar apropriar-me do que que me é sugerido. O que faço sempre é pesquisar o autor. Isso sim, é uma coisa comum a todos os trabalhos. Gosto de o conhecer o mais possível para depois desconstruir.
Gosta de personagens que exijam uma grande mudança de aspecto, a ponto de não se reconhecer ao espelho?
Sim, qualquer actor gosta disso. São sempre exercícios de ego e nós gostamos de brincar com isso, gosto dessas viagens. É um bocado infantil, mas hoje em dia tento partir mais do interior para o exterior. Essa coisa da composição física para mim é sempre a última das últimas camadas a surgir, porque me interessa sobretudo o raciocínio. E acho que no fim o corpo é muito justo, vai ao sítio. Quando se tem tudo bem estruturado interiormente, o corpo fala.
E quando lhe pedem papéis de grande preparação física é um tormento?
Sim, talvez. Encaro o meu corpo como um objecto de trabalho, assim como a minha voz ou o meu cabelo. Já tive vários trabalhos em que me exigiram, por exemplo, alguma exposição física, nomeadamente em teatro. Tudo isso passa, como disse, por uma coerência daquilo que está ser trabalhado. E todas as vezes que aconteceu foi porque o meu corpo servia perfeitamente a condição e a situação de um dado texto ou trabalho. Aí estar exposto é uma consequência.
E isso consegue-se de forma igual em qualquer formato em que se representa?
No teatro há uma vantagem enorme que é a maturação do processo de trabalho, e isso dá uma consciência de todo o percurso, o que é muito giro; vais pondo camada a camada e depois quando te dizem “vais ter de tirar a roupa aqui” está tudo bem. Acontece de forma natural. Estou a acabar de rodar um filme alemão que é muito agressivo, com três personagens, dois homens e uma mulher, em que se vive uma relação a três meio doentia. Temos cenas altamente delicadas, com exposição física e sexual, e não tivemos muito tempo, cerca de um mês de preparação. Mas vejo o meu corpo cada vez mais com um objecto de trabalho, uma continuação daquilo que me pedem. E acho que a idade também está ligada com isso.
Em que sentido?
Não te dás muita importância. Interessa-me cada vez mais na minha vida não me levar muito a sério. O meu corpo é só um corpo.
Tem muitas solicitações de alunos de Teatro ou de jovens realizadores para colaborar nos seus projectos?
Felizmente sim, e quando tenho possibilidade aceito e tenho feito muitas coisas. Gosto muito de trabalhar com gente com quem nunca trabalhei e tem-me acontecido trabalhar com gente nova, o que eu adoro. Adoro estar em primeiras encenações. É uma forma de não petrificar, de não envelhecer e não me desligar daquilo que já vem aí.
Receia o envelhecimento?
Envelhecer é uma fatalidade. A velhice na minha profissão, como em geral, é associada a uma certa perda de capacidades. Só espero é perder as minhas o mais tarde possível, mas acho que só tenho coisas boas a ganhar com a idade. Ao contrário de muitas pessoas não tenho saudades de quando era novo. Não quero ser novo para sempre, gosto de rugas. Não fumo, não quero estar velho nem estar novo, nem com crises de meia-idade. Interessa-me estar perto do meu corpo, da minha idade e do meu tempo. Este é o desafio, estar no meu tempo. Mas não tenho medo da velhice.
Quando pesquisamos o seu nome na internet diz que é de Alhandra, Paraíba, Brasil?
Paraíba, Brasil? Quem me dera estar lá agora, a apanhar sol, sem fazer nada [risos].
O Brasil é um mercado em que gostaria de trabalhar?
Sim, não tenho vontade de ir para Nova Iorque ou para Los Angeles. Já tive esse sonho, de ir para fora e entrar nesse mundo mais hollywoodesco, mas agora não. Estive a rodar com o Cacá Diegues um filme brasileiro que está a ser rodado cá e o conceito de globalização aplicado à nossa profissão é bem-vindo. Nestes meses trabalhei com um realizador brasileiro, um alemão e vou trabalhar com um canadiano. E o Brasil, além de ser um país fantástico, tem a questão da língua. Além disso eles têm uma produção de cinema incrível. O Brasil interessa-me sobretudo pelo cinema. Claro que se tivesse um convite da Globo também seria um desafio.
Que papel persegue há muito tempo mas ainda não conseguiu fazer?
Não sei. Mas quando penso nessa pergunta projecto sempre para o cinema. Gostava muito de o explorar mais. Por exemplo, nunca fiz um protagonista em cinema e adoraria. Adoraria experimentar fazer um protagonista no cinema.