É muito mais que o desabafo de um taxista entediado com a vida, a descarregar a solidão do asfalto nas costas do cliente. “Não há prémio que pague a possibilidade de os meus compatriotas verem o filme.” Impedido de sair do seu país, com a obra banida pelo regime de Teerão, Jafar não é condutor de domingo. Sobre o triunfante e incómodo “Taxi”, o responsável pela Organização do Cinema iraniana apressou-se a partilhar o parecer sobre o cineasta, com a devida advertência. “O realizador continua a viver a sua vida na via rápida.”
Sem cinto de segurança, em arriscada contramão, o guia de marcha de qualquer dissidente, Panahi segue ao volante de uma corrida distinguida pela “humanidade da história”. Sobre quatro rodas, na pele do condutor, pelas ruas da capital do Irão, recebeu e filmou as histórias dos locais sentados no banco de trás. No lugar do morto reclina-se a política, o mais delicado dos passageiros e aquele que discute o preço da bandeirada até a garganta doer. Há espaço para o humor, o mais resiliente opositor à censura. E para conhecer também a vida de uma mulher recentemente afastada do seu trabalho, ou o índex reservado a um jovem estudante de cinema, uma alusão aos próprios constrangimentos sentidos pelo discípulo de Abas Kiarostami, um recluso na sua terra que enviou à Alemanha a pequena sobrinha, Hana Saedi (que também surge na fita), para receber em palco, de lágrimas nos olhos, o Urso de Ouro do Festival de Berlim.
“Estou muito feliz por mim e pelo cinema iraniano. As pessoas no poder acusam-nos de fazer filmes para os festivais estrangeiros. Escondem-se atrás de muros políticos e não dizem que os nossos filmes não têm permissão para ser exibidos nos cinemas iranianos”, disse Jafar, numa entrevista a um meio de comunicação iraniano, no rescaldo do anúncio da vitória. Em Janeiro, se dúvidas restassem, Jafar assinava uma carta que reforça a sua vocação. “Nada me pode impedir de filmar. Apesar de todas as limitações, a necessidade de criar urge.” Aos 54 anos soma um historial de detenções encetado em 2001, quando foi interceptado no aeroporto JFK, em Nova Iorque. Em 2003 foi encorajado a abandonar o Irão. Em 2009, durante o Festival de Cinema de Montreal, convenceu o júri a apoiar o movimento verde iraniano. Em 2010, depois de Teerão recusar o pedido de deslocação ao festival de Berlim para participar num debate, volta a ser detido, acusado de trabalhar num documentário sobre a disputada reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 2009. Apontado pela propaganda contra o islamismo, acabaria por ser libertado sob fiança e impedido de sair do país, salvo para receber tratamento médico ou peregrinar até Meca. Apesar das petições lançadas pela Amnistia Internacional, rubricadas por nomes como Paul Haggis, Sean Penn ou Martin Scorsese, e da chegada ao poder do progressista Hassan Rouhani, em 2014, a história de Panahi está distante do final feliz.
Dois títulos se mantêm especialmente presentes na biografia do cineasta, que se estreou em 1995 com “The White Ballon”. “This Is Not a Film” (2011) e “Closed Curtain” (que em 2013 viu o argumento premiado em Berlim) reflectem a fase que coincide com o endurecimento das restrições impostas. No primeiro, parcialmente registado com um iPhone, revela o seu dia-a-dia durante o período de prisão domiciliária. O filme chegou à Berlinale no interior de uma pen, camuflada no interior de um bolo. No segundo conta a história de um argumentista sem nome que se instala junto ao Cáspio com o seu cão, um animal maldito à luz da lei islâmica.
Remonta a 2000 o enredo que marca a incursão mais incisiva de Panahi no contexto social e político do seu país, dentro do espírito neo-realista a que tantas vezes o associam. Em “The Circle” aborda o tratamento das mulheres e crianças em solo iraniano, enquanto em “The Crimson Gold” (2003) retrata a pobreza à boleia de um entregador de pizzas. “Offside” (2006) foi mais um passo na marcha de um desalinhado, acompanhando um grupo de jovens iranianas que se disfarçam de rapazes para conseguir acesso ao estádio Azadi, palco do encontro de qualificação para o Mundial entre o Irão e o Bahrain.
Em Dezembro de 2014, o realizador garantiu os fundos necessários para produzir “Flower”, sobre portadores de deficiências, cuja direcção estará a cargo do seu filho, Panah Panahi. O táxi há-de pegar, nem que seja de empurrão.