As camas souberam nesse mesmo dia que nunca mais iam dormir descansadas. Em cinco minutos, um escreveu, o outro cantou. O resto é lenda e ascensão meteórica da taxa de natalidade. Se querem culpar alguém pela sobreocupação do planeta, culpem David Ritz e Marvin Gaye; barafustem com o começo dos anos 80, quando o primeiro trabalhava na biografia do segundo e se encontravam numa localidade perdida na Europa. “O Marvin estava num sítio escuro e tinha um livro de porno bizarro em cima da mesa. Disse-lhe que aquilo era doentio e que ele precisava era de sexual healing”, recordou Ritz esta semana ao The Daily Beast. “Isso é um título interessante para uma canção. Mas quer dizer o quê?”, perguntou-lhe Gaye. E Ritz explicou-lhe, com as palavras certas, como quem diz a um miúdo que vai correr tudo bem – afinal era um dó de alma que a ideia tivesse morte precoce, no exílio no Velho Mundo, de um timbre quente quase vencido pelas depressões, pelo abuso de drogas, pelas relações atribuladas e pelo flop do álbum “Here, My Dear”, inspirado pelo fracasso do seu primeiro casamento, com Anna Gordy. “Sabes como é, apaixonas-te por uma mulher, ela gosta de ti como és, não tens que sofrer. É como se fosses curado por uma relação física e romântica.” E Gaye, e todos os que suspiravam pelo fim do purgatório, pediram-lhe: “Transforma isso num poema.” E pronto, só faltava voltar a apontar o dedo ao jornalista (que assinou artigos para publicações como a “Rolling Stone” ou a “D-Magazine”), agora pela responsabilidade por qualquer anticlímax – os uniformes extravantes são uma das imagens de marca do autor, nascido há 71 anos em Nova Iorque, filho de um vendedor de chapéus que levou a família para Dallas.
Letrista acidental, David estava longe de imaginar que aquele episódio em Abril de 1982 ia resultar em canção, gravada quatro ou cinco meses depois, e transformada em hit em 1983, um regresso fulgurante de Marvin numa fase pós-Motown. Dificilmente pensaria também que seria necessário rever “Divided Soul: The Life of Marvin Gaye”, publicado em 1985, um ano depois de Marvin Gaye, que conhecera na década de 70, ser assassinado pelo pai, em Los Angeles. Por altura dos trágicos disparos de Marvin Gaye, Sr., Ritz tinha acabado de entrevistar os pais do músico, e o então projecto de autobiografia foi convertido numa biografia. “Ele já cá não estava para dar o seu aval”, justificou-se David, que se estreou nas colaborações com as estrelas da música em 1978.
Foi com “Brother Ray”, prosa na primeira pessoa sobre o percurso de Ray Charles, que encontrou o seu formato, trilhando os trajectos de figuras presentes na banda sonora de qualquer romance que se preze. A intenção inicial era escrever uma comum biografia, até chegar à hipótese de centrar na figura de Ray a narração da própria história. Lançava-se assim numa extensa carreira como escritor fantasma (Ritz escreveu já tantos livros, mais de 50, que há quem pense que usa um ghostwriter, mas na verdade ele é o ghostwriter). No entanto, o sucesso parece sempre um lugar distante. “Pensava que depois do livro sobre Ray era certo que me iam ligar o Elton John, o Mick Jagger ou o Paul McCartney.” Mas não. “É que ninguém me ligou, caraças!”, contou nessa entrevista ao Daily Beast. E David Ritz, que em tempos pensou tornar-se um académico, continou a escrever. E a levar tampas de Stevie Wonder e Liza Minnelli. E a introduzir zero alterações no seu guarda-roupa.
Ainda no campo da música, seguiram-se títulos para nomes como Smokey Robinson (“Inside My Life”, 1989); Jerry Wexler, “Rhythm and the Blues”, 1993); Etta James (“Rage to Survive”, 1995); B. B. King (“Blues All Around Me”, 1996); Lang Lang (“Journey of a Thousand Miles”, 2008); Scott Weiland (“Not Dead and not for Sale”, 2011); ou Buddy Guy (“When I Left Home”, 2012).
Em 2014, o também romancista seguiu os passos do comediante Andrew Dice Clay, do guitarrista dos Aerosmith, Joe Perry, dividiu os créditos autorais com o apresentador de talk shows Tavis Smiley no livro sobre Martin Luther King Jr. e assinou uma aclamada biografia de Aretha Franklin (pela crítica, não pela perfilada, que o acusou de “mentiras” várias). Esta Primavera, mais uma edição, desta vez o resultado da colaboração com Willie Nelson (“It”s a Long Story”) e ainda “My Journey with Maya”, sobre Maya Angelou.
Ao que tudo indica, a confiar no seu site pessoal, David Ritz tem sabido praticar a epifania partilhada com Gaye. Vive em Los Angeles com Roberta, sua mulher há 47 anos. Que se lixem os calções e as t-shirts garridas.J