Emma e Alana.Filhas de três pais


Depois de me explicarem não tive qualquer receio. Percebi que o bebé ia ter os meus genes e os genes do meu marido e a mitocôndria da dadora era como se fosse comida para ele crescer.” Maureen Ott é engenheira e trabalha num laboratório de energia nuclear em Pittsburgh, na Pensilvânia. Estava há sete anos…


Depois de me explicarem não tive qualquer receio. Percebi que o bebé ia ter os meus genes e os genes do meu marido e a mitocôndria da dadora era como se fosse comida para ele crescer.” Maureen Ott é engenheira e trabalha num laboratório de energia nuclear em Pittsburgh, na Pensilvânia. Estava há sete anos a tentar engravidar quando uma técnica experimental em Nova Jérsia a fez voltar a ter esperança. É assim que explica o que fez. Tudo começou há 20 anos mas nunca contou tantas vezes a história como nos últimos meses. A sua filha Emma seria a primeira criança no mundo a nascer com material genético de três pessoas. A primeira filha de três pais, como se diz agora depois de meses de polémica no Reino Unido, que este ano se tornou o primeiro país do mundo a aprovar a técnica.

Durante anos Maureen nunca pensara em semelhante expressão. Atende o telefone com dúvidas sobre se há-de falar de novo. Tem tentado resguardar-se, também porque a filha, hoje com 17 anos, ainda não conhece “todos os pormenores”, explica. “Pensei contar-lhe, mas depois ela nunca fez muitas perguntas”, justifica. “Somos muito felizes por a termos tido. É absolutamente normal. A única coisa estranha é ter saído excepcionalmente inteligente”, ri-se.

Emma está no último ano do liceu, tem nota máxima a todas as disciplinas, faz desporto e está a pensar seguir ciências empresariais. Nasceu a 9 de Maio de 1997, depois de os pais terem sido recebidos por uma equipa do Centro Médico St. Barnabas, em Nova Jérsia. Estavam

a testar novas formas de garantir a viabilidade dos embriões nos primeiros tempos de gestação e recorrer ao citoplasma de óvulos de uma dadora – o espaço que envolve o núcleo das células onde estão as tais mitocôndrias, que funcionam como uma espécie de baterias celulares – era uma das hipóteses. Maureen, com ovários policísticos – “muitos óvulos mas de pouca qualidade” – foi seleccionada e a sua filha fez logo história, na altura menos mediatizada. “Bebé saudável nasce depois da primeira transferência citoplasmática com sucesso”, escreveram os jornais.

Entre 1997 e 2001 viriam a nascer outras 16 crianças em St. Barnabas. Nesse período, outras clínicas começaram a usar a técnica, entre as quais a IVF Michigan. Foi aí que Sharon Saarinem, há dez anos a tentar engravidar, conseguiu realizar o seu sonho. Alana Saarinem, de 15 anos, é a única jovem que tem dado a cara e tornou-se por isso o rosto desta promessa da medicina, mas a família de West Bloomfield começa a ressentir-se. Depois de muita insistência, Sharon atende o telefone apenas para dizer que não quer falar mais. “Conversei com o meu marido e já nos expusemos demasiado.” Alana é uma rapariga com boas notas e uma virtuosa do piano. De resto, como Emma, tudo normal.

Será mesmo assim? Em 2001, St. Barnabas desistiu do projecto de investigação por não ter financiamento para seguir os procedimentos exigidos pela FDA para mais estudos. E apesar de,

na sua fase inicial, ter sido o único projecto com certificado IRB – autorização de um comité de ética reconhecido pela FDA e várias revistas científicas -, só em 2014 a curiosidade estrangeira fez com que a administração aprovasse um projecto de reavaliação das crianças, hoje adolescentes.

Ainda não há resultados e Serena Chen, responsável pelo projecto, diz que o interesse mediático poderá dificultar o processo. “Os tratamentos de fertilidade podem ser altamente traumatizantes. Nalguns casos é comparável com o trauma de um diagnóstico de cancro ou de perder um familiar. Estamos a falar de famílias que antes de tentarem esta técnica já tinham feito centenas de ciclos de tratamento sem sucesso”, explica a directora do Departamento de Endocrinologia Reprodutiva em St. Barnabas. Começaram por enviar questionários às famílias e ver quem está disponível para colaborar e fazer alguns exames, mas as expectativas não são grandes. “Temos a noção de que muitas pessoas podem não querer reviver o que passaram ou podem nem ter contado tudo às famílias. Toda esta exposição mediática e as emoções que gera pode até interferir com os resultados”, diz a médica, acusando sentimentos mistos em relação ao entusiasmo gerado pela aprovação da técnica no Reino Unido. Por um lado, considera positivo ter sido aprovada a técnica para prevenir a transmissão de doenças mitocondriais, mas insiste isso é apenas uma parte do potencial do que estavam a estudar: o cerne do trabalho eram problemas de infertilidade gerados por falhas nas mitocôndrias. E a confusão que se instalou faz com que os telefones na clínica não parem de tocar, quando eles têm pouco a dizer. Não é um tratamento aprovado nos EUA e, até ao ponto em que o estudaram, não serviria para todas as situações de infertilidade. “Ligam-nos muitas vezes a perguntar se assim já não têm recorrer a um banco de óvulos.” Há cientistas a tentar perceber se a técnica pode ajudar ajudar mulheres mais velhas a engravidar mas aí Chen tem dúvidas: “Muitos problemas têm a ver com os cromossomas no núcleo, pelo que as mitocôndrias não seriam úteis. Estávamos a usá-las em casos muito específicos.”

Há ainda que lidar com o estigma novo dos “três pais”, que Chen pensa que pode agravar a dificuldade em obter verbas para estudos nesta área, sempre sensível por estar em causa a vida humana.

“Dizer que isto é manipulação genética é um pouco enganoso. Claro que as mitocôndrias têm ADN, mas quando uma pessoa pensa em ADN o que está em causa é o núcleo celular e o núcleo continua a ser resultado do contributo de um pai e de uma mãe.” E estão 100% seguros de que não há características transmitidas pelo ADN presente nas mitocôndrias? Chen garante que sim mas que esse aspecto, sendo o mais mediático, não é o que mais a preocupa. “Somos seres humanos complexos e mexer numa pequena coisa pode ter implicações noutras, e é isso que temos de perceber.”

A substituição de mitocôndria em fertilização in vitro foi aprovada pelo parlamento britânico a 3 de Fevereiro, depois de três anos de trabalhos na Autoridade Nacional de Fertilização Humana e Embriologia. Os peritos reviram as experiências da última década – em que se estima que em ensaios mais ou menos oficiais terão nascido 50 crianças – e concluíram que o procedimento “não é inseguro”. Uma espécie de código para usar “em último caso enquanto não há mais garantias” que levou o governo britânico a propor um enquadramento que prevê apenas que mulheres que possam passar doenças mitocondriais fatais para os filhos acedam ao tratamento, calculando-se que existam 2473 candidatas. Estima-se que uma em cada 6500 crianças tem alguma doença mitocondrial hereditária mas nem todas são fatais.

Depois da aprovação na Câmara dos Comuns, a lei terá agora de passar na Câmara dos Lordes, prova final marcada para dia 23. E então, se não houver nenhum revés, as primeiras crianças podem nascer já no próximo ano. Nos EUA também são esperadas novidades: foi nomeado em Janeiro um comité para estudar os “aspectos éticos e sociais” da modificação genética para prevenir a transmissão de doenças mitocondriais – e só para isso -, sendo esperado um relatório também em 2016.

Enquanto a burocracia faz o seu caminho, e também por causa disso, o debate no espaço público não tem andado com meias medidas. No ano passado, quando a FDA relançou os trabalhos nesta área, recebeu uma reclamação sintomática: estavam a “seguir as pisadas de Hitler”. Para acalmar os ânimos, mas a mostrar que os cientistas também não são de ferro, em Inglaterra um dos investigadores mais conceituados na área declarou em vésperas da votação que a técnica não é mais “sinistra que uma transfusão de sangue”. O ambiente tem sido comparado com o dos primeiros tempos de bebés proveta, o que sugere que a discussão está para continuar. Nem quando Louise Brown nasceu saudável em Julho de 1978 as críticas pararam, da condenação do “acto imoral” à ambição de substituir Deus.

A ciência vive bem na incerteza, sabe que leva tempo e não é infalível. Mas depois há as pessoas. Maureen conseguiu ter um segundo filho, com tratamentos de fertilidade convencionais. Sharon não. Depois de a FDA suspender as experiências nos EUA, conseguiu que o médico da primeira gravidez lhe repetisse o processo numa clínica do Líbano. Mas após três tentativas não funcionou. Já na política age–se, ciente de que tudo tem um preço. “Não estamos a fazer de conta que somos Deus, estamos apenas a garantir que um pai e uma mãe têm um filho saudável”, rematou o primeiro-ministro britânico. J