Anwar nunca verá o vídeo. Não assistirá aos 22 minutos e 34 segundos de propaganda do Estado Islâmico. Não quer ver o marido prostrado, de olhos no chão, fechado numa jaula. Não quer vê-lo ser consumido pelo fogo. Já imaginou as imagens mil vezes na sua cabeça e não quer torná-las ainda mais reais
Era bom que estivesse nevoeiro.” Não era costume Muath dizer-lhe aquelas coisas. Cinco dias por semana, o piloto de 26 anos ia trabalhar para a base aérea, fazia o que esperavam dele, e nunca se queixava. Mas naquele dia, naquela manhã de céu limpo, Muath não queria voar. Anwar não ligou ao pressentimento que fazia correr um frio pela espinha do marido e nem por um momento pensou que aquela seria a última vez que falava com ele. Se o tivesse sabido, pelo menos a despedida seria diferente.
Anwar ficou para trás, perdida nos seus pensamentos, enquanto Muath al-Kasasbeh, que iria pilotar o seu F-16 sobre Raqqa, na Síria, passava a ombreira da porta. Estava bonito com o seu uniforme de tenente. E era por um acaso do destino que Anwar partilhava a vida com aquele homem há cinco meses.
“Eu não era para ter acabado com o Muath, era para ter ficado com o irmão dele”, confessou, numa entrevista ao “The Independent”, já na sua qualidade de viúva. O casamento estava arranjado entre as famílias – como manda a tradição jordana –, mas o irmão mais velho de Muath, Jawad, queria ver o aspecto físico da sua noiva. “Quando ele veio ver-me eu não estava em casa. E ele conheceu outra rapariga.” As irmãs, conta, fizeram pressão para que o casamento acontecesse e ela acabou prometida a Muath. Tudo tratado entre Jawad e um tio paterno de Anwar, com quem o futuro cunhado trabalhava na base aérea, os dois como engenheiros. E assim foi. Um casamento em Julho, uma lua-de-mel em Istambul, e ao fim de nada já sabiam até que nome dar aos futuros filhos. “Ele queria que fosse Abu Karam, por isso Karam seria o nosso filho varão. Depois, disse-me ele, eu poderia escolher o nome que quisesse se fosse uma rapariga. Ia ser Leya.”
No fatídico dia, 24 de Dezembro, o avião que Muath pilotava foi abatido em Raqqa. O tenente jordano conseguiu ejectar-se mas isso revelar-se-ia tudo menos um golpe de sorte. No solo, não muito longe dos destroços, Muath cambaleou à procura do caminho da salvação. Era um homem religioso, devoto. “Tinha sempre o Alcorão no coração e nunca falhava uma prece”, contaria a mãe, Issaf, quando Muath já não era apenas o seu filho, quando já tinha ganho a dimensão de um mártir. Talvez Issaf tenha razão. Talvez Muath, entre um passo e outro, procurasse alento na dupla prece que rezara na véspera em honra dos mártires. Mas os passos trôpegos que o levaram para longe dos restos do F-16 conduziram-no à boca do lobo. Poucas horas depois de ter partilhado com a mulher o mau pressentimento que sentia, e o seu desejo de que houvesse nevoeiro, Muath era feito refém pelos combatentes do Estado Islâmico.
A imagem do piloto, recém-capturado e cercado de homens de rosto tapado, corre rapidamente a internet e surge nos sites dos principais órgãos de comunicação social de todo o mundo. A partir daqui começa a longa espera de Anwar e de Issaf, que ainda acreditam poder vê-lo regressar à Jordânia. Mas Muath já estava morto. Durante todo o mês de Janeiro, durante as seis semanas em que as duas mulheres rezaram pelo seu retorno, o corpo de Muath já não tinha sopro de vida. Fora queimado, dentro de uma jaula, dez dias depois de ser capturado. Tudo o que se passou entre 3 de Janeiro, dia da morte, e 3 de Fevereiro, dia em que o Estado Islâmico divulga o vídeo de 22 minutos e 34 segundos, foi um longo calvário em vão.
Nessa primeira terça-feira de Fevereiro, Anwar participa num protesto na Universidade de Amã, capital da Jordânia. As últimas notícias que tem sobre o destino do marido é que o governo jordano está a tentar negociar a sua libertação. Em troca de Muath oferecem Sajida al-Rishawi, uma mulher, bombista suicida, condenada à morte pelo envolvimento num ataque terrorista em 2005.
E é enquanto empunha os braços e grita pelo regresso do marido que toca o telefone. A voz da sua mãe, do outro lado da linha, está trémula e Anwar pressente-lhe as lágrimas. Não é nada, diz–lhe, apenas um desentendimento entre os filhos que a deixou abalada. Anwar não acredita. Nesse dia é ela que tem um mau pressentimento, um frio a correr-lhe a espinha. Pega no smartphone e acede à conta de Facebook.
“Descansa em paz, Muath.” O mundo desabou. A vertigem das notícias virais consome-a. Não precisou de ver o vídeo. Não quer vê-lo. O seu marido, Muath, 26 anos, foi queimado vivo dentro de uma jaula. Não precisa de ver as imagens. Elas já estão dentro de si e Anwar não aguenta e cai sem sentidos. É levada para o hospital para lhe prestarem socorro.
Se ao menos tivesse estado nevoeiro. Se ao menos Muath tivesse sido médico, como sonhava o seu pai. Se ao menos ela estivesse em casa quando Jawad foi conhecê-la. Se ao menos o seu marido não fosse herói e mártir, e ela não fosse viúva e recém-casada, uma mulher só, confortada pela rainha Rania num abraço que não muda nada. Se ao menos nada disso fosse, o seu filho varão chamar-se-ia Abu Karam. E se fosse uma menina seria Leya.