Km 7769, Istambul, Turquia
3 de Dezembro, 6 da manhã, Alexandroupoli, Grécia
Relâmpagos. A noite nervosa e desconfortável num colchão em que as molas saltam e se espetam na minha pele. Os meus pensamentos fazem o mesmo. Voltas e voltas até às três da manhã e depois um sono intermitente, sem descanso. Não interessa, está na hora. Levanto-me, acendo o camping gaz e faço café. Os raios cortam o céu da noite e entram pelo quarto. A chuva cai com violência. Preparo o meu GPS: indicações escritas a caneta num papel; ensaco as coisas na malas e levo tudo para a entrada da pensão. Equipo-me para conduzir à chuva.
Ainda tenho tempo para reconsiderar. São uns 350 quilómetros. Se calhar era melhor ficar aqui mais um dia, descansar, deixar a chuva passar e fazer isto de uma maneira mais segura. Decido beber mais um café. Há uma tasquinha que já está aberta na esquina. Os velhotes estranham o meu visual e metem conversa. Venho daqui e vou para ali, digo-lhes. O céu negro, a reverberação dos trovões. “Hoje vou tentar chegar a Istambul.” Eles olham-me, incrédulos. “Hoje? De mota? Hoje não. O melhor é ficares por aqui. Vai chover todo o dia.”
Os velhotes voltam à conversa deles em grego. Distingo as palavras “português”, “mota” e “Constantinopola”. A chuva bruta inunda as estradas. Corvos e gaivotas esvoaçam amedrontados pelo céu negro que os relâmpagos iluminam por fracções de segundo. Revejo imagens de gente, de Lisboa até aqui. Gente para quem, na minha sanidade ou loucura, imagino que tenho a responsabilidade de levar esta viagem a bom termo, gente para quem, na minha sanidade ou loucura, imagino que me tornei a personificação de um sonho, uma fresta aberta na camada de merda do mundo. Dou os últimos golos no café, os últimos bafos no cigarro. Vamos a isso.
Avanço para me despedir dos velhotes. “Vais mesmo?”, aceno que sim, estendo-lhes a mão. Sem sorrisos e de olhos preocupados, dizem-me que conduza devagar e com cuidado. Vamos a isso. Volto para o pé da Bonnie e preparo-a com as malas. Monto a rainha das estradas e dou ao kick. Custa a pegar, sete, oito, nove vezes, mas vai. O ronco do motor. Vamos a isso, foda-se! O céu negro, a chuva, os relâmpagos, os pássaros a voar à nossa volta.
Algures na estrada
E o que é que vai restar? Quem somos nós, os do Sul, os do vinho, do azeite, do Sol e do mar? Quem somos nós, os do sangue quente, da família, da subserviência confortável? Quem somos nós, os domadores da terra, os lavradores do mar? Quem somos nós, os do fado, do flamenco, da rebétika? Os desafiadores de Deus, os de baixar a cabeça na igreja? Quem somos nós, os brutos da Europa, os das línguas venenosas, dos abraços quentes?
E quem sou eu? O que restará da estrada? Das alterações químicas que este constante “estar de passagem” forjou no meu cérebro?
7 da tarde, Istambul, Turquia
É esta a imagem do campeão, do n.o 1. Sozinho, sujo, olheiras marcadas, sentado a comer o menu n.o 3 num restaurante em Istambul. Se passasses só os olhos nem te apercebias de como por vezes, entre o cansaço e outra garfada, sorrio. Facilmente me confundirias com um qualquer urbanodepressivo que não gosta de duche. “Ei!”, chamo o empregado. Explico-lhe que vim de Lisboa numa 125cc. Ele dá um “Uau!” e chama outro empregado.
O último chama mais um: “You are the champion!”, “Podes crer, bebé, eu sou o number one”, e levanto os braços para mostrar os músculos. Depois volto a concentrar-me na comida e eles voltam ao trabalho. O ruído das conversas, das comidas a fritar e da música turca na rádio competem pelo ar do café. Lá fora os turistas compram postais, os homens tratam de assuntos, as mulheres levam as crianças para casa.
Os cânticos das mesquitas, o enorme degradê de ecos que vêm de todas as partes da cidade levam-me para cima, para cima, de onde se vê toda a cidade gigante, os milhões de pessoas a percorrer as linhas dos mapas. Ali ao lado, a Ásia. Acima, mais acima, e vemos a Croácia, a Itália, Espanha, Portugal. Mais!
Mais para cima, e vemos as caras das pessoas, uma a uma. Vemo-las na sua solidão intransponível, a enfrentarem as próprias vidas, a inventarem respostas para o impossível. Vemos o nosso gesto passageiro, tão cheio de intensidade, tão ardente de urgência, tão quase absolutamente nada para sempre. Um dia nunca mais voltaremos a percorrer as estradas. Mais para cima!
Mais para cima e os astros a circularem lentamente, corpos celestiais imensos, silenciosos, incompreensíveis. E lá em baixo nós. Os nossos olhos a encontrarem-se, as nossas mãos a tocarem-se, as nossas palavras e os nosso corpos a dançarem. Saravá.