Guttmann. A vida é Béla


Histórias obscuras, outras desconhecidas: um escritor alemão de Hamburgo  mergulha no mundo do treinador húngaro, campeão nacional pelo Porto,  bicampeão europeu pelo Benfica e até seleccionador português sem receber  um escudo que fosse. Imperdível, diz Rui Miguel Tovar   Começamos pelo fim. Pelo fim do livro escrito pelo alemão Detlev Claussen, de 66 anos de…


Histórias obscuras, outras desconhecidas: um escritor alemão de Hamburgo  mergulha no mundo do treinador húngaro, campeão nacional pelo Porto,  bicampeão europeu pelo Benfica e até seleccionador português sem receber  um escudo que fosse. Imperdível, diz Rui Miguel Tovar

 

Começamos pelo fim. Pelo fim do livro escrito pelo alemão Detlev Claussen, de 66 anos de idade, sobre a carreira de Béla Guttmann, tricampeão português (FCP 1959, SLB 1960, SLB 1961) e bicampeão europeu (SLB 1961, SLB 1962). Há muitas histórias à volta do húngaro, alguns mitos e um sem-número de dúvidas. Uma delas diz respeito ao seu tempo entre 1939 e 1945, durante a II Guerra Mundial. Onde passa o tempo Béla, judeu convicto? Com quem? E como?

Um senhor chamado Paul Moldoványi envia um email a Claussen e faz-se luz sobre a verdade. Aqui está: “Caro senhor Claussen, a sua suposição de que Guttmann tenha ficado em Budapeste durante a II Guerra está correcta. De acordo com histórias do meu pai, Paul Moldován, Béla viveu escondido por ele e os seus irmãos, com a ajuda de amigos, em Ujpest IV, na região de Megyer, Obuda. Na maior parte do tempo, no salão de barbeiro do meu pai. Foi aí que ele conheceu a minha tia Mariann, com quem se casou depois da II Guerra.”

Posto isto, aí vamos nós para a vida é Béla. Ou nem tanto. Como o próprio conta ao seu biógrafo. “Naquele tempo [anos 20], em Nova Iorque, era jovem, elegante e brilhante. E com muito dinheiro. O meu círculo de amigos girava em redor de mim. Todos riam alto, mesmo das minhas piadas mais medíocres, e as damas derretiam-se com o meu charme. Era estimado e mimado como uma estrela. As coisas foram assim de boas até à Sexta-Feira Negra de 1929. Ali perdi exactamente 55 mil dólares e então vi-me com uma mão atrás e outra à frente. Passei a ser conhecido como pobre louco pelos meus amigos, com um claro desprezo. Os meus elogios espirituosos despertavam, quando muito, um sorriso compassivo nos lábios femininos. As minhas melhores piadas deixaram de surtir efeito e os meus comentários mais animados, misturados com humor negro, eram simplesmente ignorados. Fiquei como um cão danado, sem amigos.”

Quando chega a Portugal, em 1958, é para treinar o FC Porto. Nos primeiros treinos, afasta as figuras Osvaldo e Pedroto. “Enquanto eu estiver aqui, o jogador que não rematar não terá como encontrar um lugar no ataque do onze.” Adeus futebol romântico, viva o futebol-eficácia. E o Porto é campeão nacional por diferença de um golo sobre o Benfica.

De malas aviadas para Viena, nas férias de Verão, com a mulher, o técnico volta a Portugal, sim, mas aterra em Lisboa. Então? Segue-se o Benfica. Os dirigentes do FCP nem querem acreditar. Os adeptos, idem. “Sou um especialista internacional sem fanatismo por clubes. Se eu fosse fanático, nunca conseguiria trabalhar com dedicação total num novo clube. E seria um problema em relação ao meu salário. Um especialista não pode permitir-se tal sentimento. Deixei o Porto com a consciência em paz, como um pai que morre tranquilo ao deixar os seus filhos bem na vida. Com o título de campeão nacional, deixei os jogadores do Porto na melhor posição possível. Agora vou tentar criar as melhores condições para a minha família no Benfica. É a minha obrigação primária e também a tarefa mais importante.”

Na Luz, o Benfica voa com Guttmann. No primeiro jogo europeu em 61-62, dois jogadores são apanhados pelo treinador, a altas horas da noite, nas ruas de Viena. “Sem sacrifícios, não há sucesso no futebol profissional. Sem disciplina de ferro, um exército não consegue vencer uma única batalha sequer, quanto mais a guerra. E tanto a Taça dos Campeões como o campeonato nacional podem ser comparados a uma guerra que só pode ser vencida batalha após batalha. Se um jogador não quiser aceitar o sacríficio exigido, então pode ir trabalhar para uma fábrica de sardinha enlatada. Se, pelo contrário, tiver um desempenho acima da média, então cuidarei dele para que ganhe um pão significativamente maior – e até mesmo pão com manteiga – do que ganharia na mal-cheirosa fábrica de sardinhas. Só que ele precisa de participar de tudo aquilo que eu exigir, senão será dura a penalidade.”

O resultado imediato é um 5-1 na Luz, na segunda mão. Na segunda eliminatória, o Benfica apanha 3-1 em Nuremberga. “Esta foi a nossa pior derrota europeia. O Nuremberga jogou bem e mereceu vencer, mas falhou clamorosamente o KO. Esta vantagem de dois golos não será suficiente em Lisboa. Porque em Lisboa não há neve nem 15 graus negativos e jogamos sobre um tapete bem cuidado, em vez de uma pista de patinagem escorregadia e dura. Lá poderemos jogar futebol em vez de hóquei.” No quadrinho seguinte, 6-0. “Nunca vi, nem antes nem depois, uma equipa com tanta raça”, diria Béla.

A onda de vitórias faz com que a federação chame por ele, sem qualquer contrapartida financeira. O desafio é aceite, mas só dura oito meses. Em Abril de 1960, a ruptura com a FPF via carta. “Não sou nenhum idealista nato nem estou disposto a ajudar os senhores por puro entusiasmo. Não poupei esforços para levar a sua selecção a vitórias, sem ter exigido nenhum tipo de reconhecimento material por isso. Se, ainda assim, os senhores esquecem totalmente que sou um treinador profissional e ainda me querem forçar a fazer gastos impossíveis para além do meu trabalho, então agradeço-lhes pela honra.”

Dedica-se, então, de corpo e alma ao Benfica. Sairia em 1962, conquistada a segunda Taça dos Campeões (5-3 ao Real Madrid). “Sou o treinador mais caro do mundo, mas sou o mais barato, tendo em vista os meus êxitos. Observe a contabilidade do Benfica: quando comecei lá, em 1959, ganhava 2,5 mil dólares por jogo; o meu trabalho e os meus êxitos fizeram com que o prémio subisse para 30 mil/jogo. Fiz o Benfica ficar famoso e eram sempre os outros que lucravam com isso.” O mestre está sepultado no cemitério de Viena, na ala dos judeus, com uma inscrição em nada condizente com o seu real valor: “A fussballer woa dös!” (um jogador de futebol qualquer)