Noites mal dormidas, tortilhas e lições de filologia


Km 1785, Gandía, Comunidade Valenciana 23 de Setembro Venho de três más noites consecutivas. A primeira a pagar demasiado por pensão num recinto de férias para a terceira idade – La Mata. Baratas no quarto, idosos ingleses em excursão e trinta e cinco euros para o galheiro; as outras duas, um bom exemplo de que…


Km 1785, Gandía,

Comunidade Valenciana

23 de Setembro

Venho de três más noites consecutivas. A primeira a pagar demasiado por pensão num recinto de férias para a terceira idade – La Mata. Baratas no quarto, idosos ingleses em excursão e trinta e cinco euros para o galheiro; as outras duas, um bom exemplo de que nem tudo são rosas no mundo do couchsurfing. Conteúdo demasiado pesado para ler ao sábado de manhã. Se quiserem saber mais, vão ter de comprar o livro.

Aproximo-me de Gandía sem saber bem o que este novo contacto de couchsurfing me reserva e a precisar de um bocadinho de casa para restabelecer energias. O primeiro sinal auspicioso não é uma ave a voar à minha direita, como acontecia ao Ulisses, mas um pedaço de cartolina colado numa das estantes do quarto de Eva, mesmo em frente ao “Dicionário de Catalão, Valenciano e Balear” – “Una casa sense llibres és com un cos sense ànima”. Casa.

24 de Setembro

Enquanto corta as batatas para tortilha, a avó Carmen conta histórias da sua vida como emigrante na Alemanha. Pára muitas vezes para analisar palavras, semelhanças ou dessemelhanças entre línguas, uma brincadeira que na neta acabou por se tornar profissão (Eva formou-se em Filologia Catalã). As batatas e os ovos vão ao lume mas a conversa não pára “Qui molt parla molt erra”, o provérbio quase se torna realidade, quando Carmen tira a tortilha do fogo instantes antes de se queimar.

Passamos para a sala e sentamo-nos a comer. Eva está contente por partilhar a avó e as suas histórias comigo, e Carmen não se faz rogada. Ainda se lembra dos bombardeamentos dos “azules” durante a guerra civil, de fugir de mão dada com o pai para uma casa isolada no Montdúver (a montanha que, lá fora, imponente, vela silenciosamente pela aldeia).

A refeição é interrompida pelo som de gotas a bater nos estores. A zona de Gandía (como todas aquelas por que passei até aqui) vem de uma seca agressiva, sem um mililitro de água durante meses. Carmen levanta-se da mesa para abrir os estores: “Para podermos ver a chuva.” Avó e neta deixam-se estar caladas durante instantes. Sinto que as gotas de água caem também sobre elas, que, como uma continuação orgânica dos montes e das planícies de Gandía, são os seus corpos que são renovados pela chuva, que voltam a ganhar esperança, força para sobreviver a mais um círculo de órbita da Terra à volta do Sol. Por algum desvio, a nossa conversa vai parar à religião – “Eu não gosto de padres. Nunca gostei. Se me dá para isso, vou sozinha à igreja. Faço o que tenho a fazer e volto para casa. Não preciso do resto.”

Entretanto chega Juan, o irmão de Eva. Tem 21 anos e largou tudo para se dedicar à agricultura. A vontade surgiu, implacável, com a morte do avô. “De repente apercebi-me de que todo um conhecimento sobre a terra, sobre o trabalho, tinha desaparecido. O meu pai nunca se interessou por esse tipo de coisas, e eu era demasiado novo para estar em pé de igualdade com o meu avô, para perceber o que se estava a passar.” O terreno do avô agora está todo trabalhado por Juan. “No início era difícil Ninguém me tinha ensinado nada. Foi tudo tentativa e erro. Como houve um lapso na transmissão de conhecimento, tive de começar sozinho. Sem toda a informação que poderia ter recebido dos mais velhos.”

Da mesma maneira que Juan tenta salvar e preservar a identidade do trabalho da terra, Eva esforça-se por manter a língua, a cultura. Colabora com associações de preservação da cultura do País Valencià, com o partido valenciano Compromís. Na sua companhia, com o irmão, com Carmen, sinto que há algo vivo que se mantém entre gerações. A cultura, a tradição não são coisas fechadas, não são ficção. São elementos úteis, preciosos. A família não é só um laço inevitável de sangue, é um contrato assinado conscientemente, de livre vontade, firmado com a terra, com a língua, em direcção a um futuro em que as pessoas morrem menos porque se tornam uma parte de física das palavras que dizes, do trabalho que fazes.

Já estamos cansados e a pensar em terminar o dia quando Eva lembra que, numa terrazinha perto, Bellreugard, estão a começar as festas de Moros e Cristianos. Paramos para ver as actividades. Está tudo calmo até eu tirar uma foto com flash. Aí, de repente, somos abordados por um dos grupos. Quando lhes explico a viagem que estou a fazer, agarram em nós e levam-nos, de peña em peña (durante as festas, grande parte das garagens da aldeia são ocupadas como bares provisórios a que chamam peñas), oferecendo-nos Cazalla, uma espécie de bagaço com sabor a anis que se deve beber de um trago. Durante umas horas tornamo-nos, não mouros nem cristãos, mas sim um bando de piratas que entra pelas garagens adentro, enche os espaços de danças e gritos de guerra, e esvazia as garrafas de todos os portos.

Quando chega a hora de seguir viagem o meu peito está apreensivo. Não é todos os dias que se encontra esta espécie de conforto, de casa, de quentinho. Mas há que seguir.

Adéu, Gandía. Vou ter saudades.