Vanessa e o amor nos tempos de crise


A Vanessa está hoje consciente de que viveu muito tempo acima das suas possibilidades. Por exemplo, quando andava com o Zé Tó e o Tó Mané ao mesmo tempo fartava-se de gastar dinheiro. Convenceu-se das vantagens do amor em tempos de crise   – O amor é mais fácil ou mais difícil durante os tempos…


A Vanessa está hoje consciente de que viveu muito tempo acima das suas possibilidades. Por exemplo, quando andava com o Zé Tó e o Tó Mané ao mesmo tempo fartava-se de gastar dinheiro. Convenceu-se das vantagens do amor em tempos de crise

 

– O amor é mais fácil ou mais difícil durante os tempos de crise?

A Vanessa estava instalada em minha casa praticamente desde que tinha chegado de Londres. Neste momento não havia alternativa: o seu apartamento, que durante o tempo todo em que ela optou por sair da zona de conforto foi gerido exclusivamente pelos seus três filhos de vinte e poucos anos, estava inabitável. Ou encontrava-se interdito a maiores de 40, já que havia demasiada gente a entrar e a sair e a dormir pelos cantos, a ressacar, muita música e jantares onde uma mãe se sentia a mais. O lugar inabitável é aquele onde se foi feliz, como escrevia o Cesare Pavese, mas também aquele que passou a ser governado por três filhos homens. A Vanessa quis fugir da sua antiga morada e eu não tive outro remédio senão sacar o resquício de hospitalidade que reside no fundo do meu cérebro e aceitar que, pelo menos por uns tempos, a Vanessa vivesse lá em casa.

Estávamos na cozinha a beber café, de manhãzinha, e o que eu mais queria era que ninguém falasse. Mas ela falou. Ela tem sempre que falar mesmo que seja de manhã, que eu tenha acordado há 15 minutos e esteja de roupão.

– O amor é mais fácil ou mais difícil durante os tempos de crise?

– Tenho sono.

Eu e a Vanessa já tínhamos vivido juntas durante os tempos da faculdade, mas a terra tinha tremido várias vezes depois disso, estruturas que julgávamos imutáveis desapareceram, prédios sólidos da nossa infância implodiram sem nos pedir licença. As coisas mudam e não mudam: nada estava como dantes, menos a nossa estúpida familiaridade, aquela partícula extraordinária que permanece sempre que o conhecimento mútuo remonta ao tempo das cavernas.

– Ó Vanessa, deixa-me em paz. Vai dar uma volta.

– És uma pessoa insuportável. Mas já eras, sabias?

– Sim. E tu também.

– Mas diz lá: o amor é mais fácil ou mais difícil nos tempos de crise?

– Estás a falar da crise económica ou da crise da idade?

– Das duas.

A crise económica não era boa para o amor, mas a crise da idade também não. As coisas eram sempre mais difíceis com menos dinheiro e com mais anos. Bastava olhar para Passos Coelho, um sex-symbol no seu tempo – é ver as imagens que passam nas televisões cada vez que se fala no caso da Tecnoforma – e perceber tudo.

– Eu estou preocupada com a crise financeira. Preciso de um emprego rapidamente, de arranjar uma casa para morar e poder sair daqui. Mas a crise da idade não me preocupa nada.

– Deves estar a gozar, Vanessa.

– Mas é que eu acho sinceramente que o amor é muito melhor nos tempos de crise! Durante as crises dá-se valor às pequenas coisas. Nos tempos da abundância é uma seca, ninguém se contenta com nada.

– Só falta dizeres que andaste a viver acima das tuas possibilidades durante estes anos todos!

– De certa maneira andei. Quando namorava ao mesmo tempo com o Zé Tó e com o Tó Mané não foi uma coisa boa. Fartava-me de gastar dinheiro a jantar fora, andava cansadíssima, e ter que fugir ora de um ora de outro dava-me cabo do juízo. A abundância não é positiva, pode não ser mesmo nada positiva.

– Ó pá, mas isso pá…

– A infidelidade, que dá uma trabalheira, é uma coisa dos tempos da abundância. A vantagem da crise é que diminui radicalmente o impulso da infidelidade. Para já, tens que ficar mais tempo em casa porque não há dinheiro. E a falta de dinheiro torna os casais mais próximos, solidários, amantíssimos.

– Haverá pessoas que pensam exactamente o contrário.

– Estou a falar de mim, santo Deus! Estou convencidíssima que enquanto existir crise vou ser muito feliz no amor. Vou deixar de ser tão egoísta, tão manipuladora.

– Mas decidiste isso hoje? E tens algum namorado?

– Decidi que vou ter. Para que aconteça qualquer coisa na tua vida tens que tomar uma decisão. Andei a ler um livro que dizia que devíamos fazer todos os dias uma “to do list”. A primeira coisa da minha “to do list” é arranjar um namorado.

– Pensei que fosse arranjar um trabalho.

– Vou tentar o dois em um. A minha ideia é começar a sair com os amigos da Celinha que é tudo malta lá do Costa. Vou telefonar-lhe. Pode ser que ela tenha algum programa para hoje.