Km 945. Granada, Andaluzia
14 de Setembro
Chego a Granada quase ao final do dia e ponho-me em busca de sítio para dormir. O primeiro hostel que encontro está cheio. Pergunto a uma rapariga que leva um bebé ao colo se conhece outras hipóteses e ela diz que me acompanha. Passados uns minutos e alguma conversa, convida-me a ficar em casa da sua família. Eu não me faço de esquisito. Giulia é uma italiana que trabalha em investigação. Mora em Granada com Nicolò, o namorado, e Miro, o filho de seis meses. Diz que viajava muito, e que ter-me em casa e ouvir as histórias que imagina que eu tenho para contar será um pouco como viajar e, por isso, faz questão que eu aceite.
Depois de deixar as minhas malas na sua vivenda, que fica bem no centro de Granada e tem um terraço com uma vista espectacular para o pôr-do-sol sobre a cidade, leva-me a casa de uma amiga australiana, que tem um terraço com uma vista ainda mais épica. Passamos o resto da noite a comer pizza, a beber gin tónico e a conversar. Sim, uma boa dose de sorte, não posso negar.
15 de Setembro.
Atiro-me sozinho à cidade. São demasiadas coisas para ver num só dia, mas há que tentar. Em Sacramonte há um tipo de uns 60 anos e com ar de cientista louco que está à porta de uma gruta e que me chama. Aproximo-me em passos desconfiados. “Não te vou comer!” Dentro da “cueva”, que tem mais do que quatro divisões bem espaçosas, há uma máquina de fiar feita com uma roda de bicicleta e um grande tear de madeira com mais de 200 anos. O “tejedor” conta-me que é muito conhecido e faz muitas exposições no Japão. Depois de exemplificar como funcionam os mecanismos do seu trabalho, pergunta-me se gosto de erva. “Para mim é demasiado cedo.” “Pois se quiseres, já sabes.”
Sigo. Entro num cafezinho para beber qualquer coisa fresca. Lá dentro estão dois ciganos, um de uns 40 e poucos anos (Lolo) e outro de uns 15. O mais velho está a ensinar o mais novo a cantar. “Eu cantava muito, mas fui operado às cordas vocais e agora não me posso esforçar. Estou a tentar ensinar o chaval, mas olha para isto.” O miúdo está envergonhado com a minha presença. Não abre a boca, mas já lhe dá na guitarra como gente grande. Sigo, agora refrescado pela cerveja e pela conversa. Subo para San Miguel Alto, onde há grutas que se discute se foram criadas há muitos anos ou no século XX, e que entretanto se tornaram um ponto de atracção e de festa por terem sido ocupadas por hippies, ciganos e senegaleses. A verdade é que já há uns meses que a polícia lá foi para desalojar as pessoas, porque toda a encosta corre risco de derrocada. Depois disso, só ficaram os que não têm mesmo outro sítio para onde ir. Enquanto passo pelos trilhos sou abordado por um senegalês que me convida para entrar em sua casa. Fuma-se erva e ouve-se Bob Marley. Como não percebo bem os nomes dos dois tipos que estão em casa, peço-lhes que mos escrevam. Um deles diz-me que não pode porque não estudou e o outro aponta os nomes no meu caderno com uma caligrafia rude. Vivem de vender chapéus, t-shirts e bugigangas aos turistas, o que não é suficiente para viver. “A marijuana ajuda.” Nenhum deles tem família na Europa e dizem-me que querem voltar. “Está-se melhor aqui, mas não assim tão melhor.” Entra na gruta um inglês com roupas de hindu que vem fazer uma compra. Eu penso em sacar um foto, mas depois ganho consciência de que só vou ser mais um branco com vida confortável a tirar fotografias à pobreza como atracção turística. Sigo.
Paro numa casa de chá ao estilo árabe (as ruelas de Granada estão cheias delas) para escrever um bocado. Sou atendido por Moussa, da minha idade, com quem começo a conversar.
“O meu pai é de Granada, a minha mãe de Málaga. Eram os dois católicos mas, quando era jovem, o meu pai foi ao deserto e o que quer que tenha acontecido por lá fez com que se convertesse ao islamismo. Eu já nasci muçulmano (…) Quando era novo, era mais complicado. Beber, as mulheres e isso… Tive de experimentar. Mas agora estou tranquilo. (…) Tenho dez irmãos, uma das minhas irmãs tem um marido que também tem dez irmãos, e outra casou-se com um nigeriano que tem mais de 60 irmãos. O pai dele tem 4 mulheres, mas como tem dinheiro também pode fazer filhos com outras mulheres. O meu pai, perto dos 50 anos, pediu a reforma antecipada de professor primário para poder viajar. Morreu na Mauritânia, de ataque cardíaco. Eu, uma vez, fui ter com ele para estudar árabe, mas encontrei uma negra bonita, casei-me e não estudei nada.” Moussa procura no youtube um vídeo que fizeram em homenagem ao seu pai. Nas imagens aparece um homem de longas barbas a ensinar crianças árabes numa escola feita de pano, algures na Mauritânia. Há algo de comovente nisto de ser um desconhecido a quem alguém faz questão de passar a memória do pai desaparecido.
“Deixo-te o meu mail, sim?” diz-me Moussa. “Vai enviando fotos. Assim viajamos juntos.”