Vanessa em Paddington, doida por regressar ao país na moda


Há três semanas fui a Londres em trabalho. Ao sair do comboio na estação de Paddington, era quase meia-noite, fiquei aturdida com as ruas cheias de pessoas e néones e tive duas assombrações: 1. Londres é uma sala de cinema em sessões contínuas, mas em bom; 2. Encontrei a Vanessa. A última vez que tinha…


Há três semanas fui a Londres em trabalho. Ao sair do comboio na estação de Paddington, era quase meia-noite, fiquei aturdida com as ruas cheias de pessoas e néones e tive duas assombrações:

1. Londres é uma sala de cinema em sessões contínuas, mas em bom;

2. Encontrei a Vanessa.

A última vez que tinha estado com a minha amiga Vanessa foi antes da chegada da troika. Jantámos num sítio que me envergonho de nomear, até porque hoje nem eu nem ela temos dinheiro para lá ir. Pouco tempo depois telefonou-me. Estava desempregada, depois de uma reestruturação da empresa e consequente “dispensa” de “colaboradores”. Tinha decidido apanhar um avião para Londres.

Isto foi mais ou menos na mesma altura em que o primeiro-ministro mandou os portugueses emigrar. A Vanessa concordou e também viu ali uma oportunidade: afinal, disse-me, sempre tinha querido viver em Londres. E não era tão bom agora poder ir para qualquer lado, livre e sem amarras, conhecer novos sítios, pessoas diferentes, línguas estrangeiras? Escolheu a melhor cidade do mundo e repetiu-me até à insanidade a frase de Samuel Johnson: “Quando alguém está cansado de Londres está cansado da vida. Londres tem tudo o que a vida pode oferecer.” Se era assim no tempo do Dr. Johnson, o horrível século xviii, o século xxi haveria de oferecer muito mais a Vanessa. No dia seguinte a aterrar em Luton tinha arranjado emprego a servir às mesas num tasco decente e um quartinho nos su-búrbios com wi-fi.

Ao longo deste tempo falámos de vez em quando no chat do Facebook – umas tretas superficiais – e eu fazia likes a todas as fotografias que ela tirava nas pontes do Tamisa, em Camden Town com os falsos punks, a olhar para o Nelson em Trafalgar, nas Tates velha e nova, no Soho, no Museu Britânico e até na Fleet Street dos tempos heróicos do jornalismo, que agora é só escura e deixou de ter jornais há muito tempo.

E foi depois de sair da estação de Paddington à meia-noite, enquanto olhava para tudo à minha volta menos para o chão, que tropecei literalmente na Vanessa e quase a ia atirando para debaixo de um automóvel. Reconheci-a pelo tom de voz quando expeliu uma violenta e impublicável imprecação lusitana.

Assim:
– F. C$R$$$%#lh###0# tu aqui? O que é que aqui fazes?
– Não m’acredito.
(Sem querer, saiu-me em açoriano.)
– Que é que fazes aqui?
– E tu?
– Oh pá, eu acabei de sair do restaurante. Despedi-me.
– Despediste-te?
– Sim, quero voltar para Portugal.
– Para Portugal? Fazer o quê?
– Uns amigos meus do PSD dizem que as coisas estão muito melhores desde que a troika se foi embora. O emprego, os juros da dívida, Lisboa está na moda, o Porto também, essas coisas. É por isso que eu quero voltar.
– Eh pá, não sei… E vais fazer o quê?
– Logo se vê. Tenho uns amigos que são amigos do António Costa. Pode ser que… não sei, depois vê-se. Gosto muito de estar aqui, mas já passou tempo de mais. E só conheci ingleses muito bêbados. Ao contrário do que eu estava à espera, não são grande coisa. De certa maneira, percebo os escoceses. Nem imaginas, andei com um gajo que era igualzinho ao David Cameron. Lá para o fim, já só tinha vontade de o atirar ao Thames.
Vanessa agora já não dizia o nome do rio em português. E tinha um “accent”. A vida é mesmo uma coisa maluca e não vale a pena tentar perceber.
– E como vai aquilo por lá?
Por cá mais ou menos. Haja saúde. Lisboa está bonita. O PS também. O governo que iria sucumbir ao programa da troika transformou-se quase numa velha glória. Passou-se tanta coisa e tão estranha…

Mas ela insistiu:
– Diz-me sinceramente o que pensas do António Costa. Vai ganhar o PS?
– Acho que sim. Mas é incrível que na campanha ele não disse praticamente nada.
– Também não precisa. O gajo tem pinta.
– Sim, mas a política não é isso.
– Tu é que não percebes nada disto! A política é exactamente igual ao sexo. Não é preciso explicar. Nunca é preciso explicar.
E depois olhou para mim com um riso entre o complacente e o pérfido.
– Será que também já não percebes nada de sexo?
Havia um pub por perto e apeteceu-me uma pint. Uma half a pint, para começar.

(continua)