Julgamento de Nuremberga. As vozes dos carrascos


A única coisa que nos impede de repetir a história é conhecê-la. Nuno Ramos de Almeida aconselha “Entrevistas de Nuremberga”, para percebermos como aconteceu, pela voz dos seus feitores  É possível pensar o nazismo? Ou melhor, é possível ser nazi e pensar? Adorno escreveu que a poesia tinha deixado de fazer sentido depois de Auschwitz,…


A única coisa que nos impede de repetir a história é conhecê-la. Nuno Ramos de Almeida aconselha “Entrevistas de Nuremberga”, para percebermos como aconteceu, pela voz dos seus feitores 

É possível pensar o nazismo? Ou melhor, é possível ser nazi e pensar?

Adorno escreveu que a poesia tinha deixado de fazer sentido depois de Auschwitz, como se houvesse um marco com um antes e um depois, em que o encantamento da vida tivesse sido estilhaçado pela erupção de um mal absoluto. Falamos de encantamento e não de falta de racionalidade ou do uso de uma razão prática. Basta ver o modelo organizacional da “solução final” para perceber que ela não é fruto da crueldade primitiva, mas resultado de uma moderna e científica selvajaria.

[[{“fid”:”2132258″,”view_mode”:”teaser”,”type”:”media”,”attributes”:{“height”:158,”width”:220,”class”:”media-element file-teaser”}}]]

O problema da ideia de uma ruptura absoluta do curso do fio histórico que teria sido criada pelo nazismo é duplo: por um lado, remete para o domínio da anormalidade, como se uma doença mental se tratasse, aquilo que aconteceu, e por outro torna-o um momento excepcional, quase a-histórico, que nunca poderá repetir-se. Ora é necessário dizer, retornando às teses de Hannah Arendt, que o mal nazi é uma manifestação de homens banais e comuns, que escolheram uma forma de pensamento que justificava as consequências dos seus actos: o seu alegado não pensar era uma forma de pensamento. Ora esse mal banal não foi feito por supervilões, com superpoderes; é fruto, como sempre, de homens e mulheres e das suas circunstâncias. E se é fruto delas, nada nos pode garantir que o acontecido não voltará a acontecer. Aqui a história, que aconteceu em tragédia, não é certo que apenas se repetirá em comédia, para fazer uso da categoria de Hegel, usada por Marx na sua análise das revoluções e guerras em França.

[[{“fid”:”2132260″,”view_mode”:”teaser”,”type”:”media”,”attributes”:{“height”:179,”width”:220,”class”:”media-element file-teaser”}}]]

O julgamento dos nazis foi feito em Nuremberga, local em que se passou o 6.o congresso do Partido Nacional-Socialista Alemão em 1934, que entronizou Hitler, e foi coreografado pelas câmaras de Leni Riefenstahl, na sua obra-prima de propaganda, “O Triunfo da Vontade”.

O livro de Leon Goldensohn “Entrevistas de Nuremberga” é um documento precioso. Nas celas da prisão de Nuremberga, local em que iriam decorrer, entre 20 de Novembro de 1945 e 1 de Outubro de 1946, os julgamentos, oficialmente o Tribunal Militar Internacional versus Hermann Goering e outros 23 responsáveis nazis, o psiquiatra norte-americano responsável pelo acompanhamento do estado de saúde mental dos réus e testemunhas fez uma série de entrevistas. Ficam documentadas conversas com 14 testemunhas e 19 réus, entre os quais o número dois do regime, Hermann Goering, o antigo dirigente do partido Rudolf Hess, o ministro de Negócios Estrangeiros Ribbentrop e o arquitecto do regime e ministro do Armamento, Albert Speer, conhecido como “o bom nazi”.

Estas conversas, tidas pelo psiquiatra, dão-se numa ocasião particular, nas vésperas de um julgamento que levará muitos dos réus ao cadafalso, e obviamente que a circunstância da derrota e da iminente condenação altera aquilo que é dito. Escrito de outra forma: um homem livre não fala da mesma maneira que um prisioneiro, e a mediação e voz do psiquiatra americano está sempre entre nós e o pensamento dos entrevistados. Mas tirando estas questões, que não são poucas, é um documento histórico notável, em que é possível ouvir o eco da voz dos nazis e tentar entender – coisa muito diferente de apoiar ou justificar – o seu ponto de vista e a sua existência.

[[{“fid”:”2132262″,”view_mode”:”teaser”,”type”:”media”,”attributes”:{“height”:172,”width”:220,”class”:”media-element file-teaser”}}]]

As conversas têm um óbvio pendor psicoligizante, em que se aborda a infância, as relações familiares e a adolescência e crescimento dos visados, sem nunca perder os acontecimentos e factos que levaram ao nascimento, crescimento e queda do regime de Hitler. Podemos ler opiniões tão diversas como o ódio de Goering à arte moderna: “Em geral sou muito céptico em relação à pintura moderna. O Picasso, por exemplo, dá-me náuseas. O que eu preferia era a arte gótica”, diz o marechal do ar. Ou a sua opinião de que os nazis poderiam ter evitado o racismo e o anti-semitismo não fossem alguns factos particulares: “Não era de modo nenhum uma questão fundamental. Era completamente irrelevante ou incidental. Só passou a ser fundamental ou importante porque uma facção de nazis que eram expoentes fanáticos do racismo adquiriram poder político. Homens como Rosenberg, Streicher, Himmler e Goebbels”, garante.

[[{“fid”:”2132264″,”view_mode”:”teaser”,”type”:”media”,”attributes”:{“height”:159,”width”:220,”class”:”media-element file-teaser”}}]]

Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, que foi testemunha no julgamento, posteriormente sujeito a condenação, por um tribunal polaco, e executado, tinha uma visão mais prática da solução final: “É verdade que não se pode ser sentimental, quer para fuzilar pessoas, quer para matá-las em câmaras de gás”, sem deixar de acrescentar: “Não entendo o que quer dizer com ficar perturbado com estas coisas, porque eu pessoalmente não assassinei ninguém. Era apenas o director do programa de extermínio de Auschwitz”.

É preciso conhecer a história para não a repetir. Este livro é muito importante.