Júlia Pinheiro. “A Má Língua causava azia a muita gente”


Quando, certo dia, um deputado disse em plena Assembleia “Mas o que é que vocês pensam, isto não é a “Noite da Má Língua””, o grupo do programa percebeu o impacto que tinha: “Foi o momento em que dissemos “Estamos lá”.” A apresentadora e directora de programas da SIC, Júlia Pinheiro, recua 20 anos no…


Quando, certo dia, um deputado disse em plena Assembleia “Mas o que é que vocês pensam, isto não é a “Noite da Má Língua””, o grupo do programa percebeu o impacto que tinha: “Foi o momento em que dissemos “Estamos lá”.” A apresentadora e directora de programas da SIC, Júlia Pinheiro, recua 20 anos no tempo para recordar este autêntico período de ruptura. A “Noite da Má Língua” regressa com o programa “Perdidos e Achados”, que reuniu os protagonistas, duas décadas depois, para recuperar o humor mordaz de outros tempos.

Rita Blanco, Miguel Esteves Cardoso, Manuel Serrão e Rui Zink nas cadeiras do frente-a-frente, Júlia Pinheiro como moderadora. Muitas caras conhecidas passaram pelo programa mas estas tinham lugar marcado. Estávamos em 1994 quando o formato arrancou. “Na altura fiquei muito agradada e ao mesmo tempo com muito medo, não era uma coisa fácil de fazer.” Recorda que estava a trabalhar como pivot no programa “Praça Pública” quando foi convidada por Emídio Rangel para um projecto novo, uma ideia de Miguel Esteves Cardoso e da jornalista Helena Sanches Osório (1948-2003). O entusiasmo fundiu-se com o receio quando lhe disseram que a ideia era criticar tudo, “sem complacência”. “Lembro-me que o que perguntei foi: “E se tivermos de dizer mal do Papa?” E o Emídio respondeu “Dizem!””

Apesar do alinhamento, era sobretudo de improviso que se fazia o debate. Júlia recorda os momentos únicos, de “génio”, que o formato permitia e as peripécias que proporcionava a entrega do prémio “Noite da Má Língua”. “Houve uma primeira fase em que ninguém aceitava” – até ao dia em que o entregaram a Durão Barroso, na altura secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros. “Foi o primeiro político a aceitar o prémio, foi o sinal para o resto da classe. A partir daí entregámos a ministros; o Presidente Cavaco Silva também aceitou, já não estava em funções. O engenheiro Guterres aceitou três vezes. Depois até ficava bem”, conclui, entre risos. Mas os efeitos colaterais também afectaram pessoalmente os intervenientes. Júlia Pinheiro, que já tinha trabalhado como assessora de imprensa num dos governos de Cavaco, conta como certas pessoas passaram a virar-lhe a cara. “Fazia parte. Essas coisas nunca me preocuparam, nunca tive desejo de proximidade com a classe política. Se estavam zangados, tudo bem, não havia problema nenhum”.

Tratava-se de uma liberdade de expressão total, conta a apresentadora, em que até a autocrítica era permitida. “Jamais um de nós foi intimidado por se meter com o “Expresso”, que é uma espécie de jóia de família do grupo. Na altura pensei: ou isto resulta muito bem ou muito mal.” A primeira opção prevaleceu e o programa esteve no ar quatro anos. Era feito com cinco tostões, e assim conhecemos o reverso da moeda: eram poucos os patrocinadores que aceitavam associar-se ao programa, com medo de serem eles próprios tema de conversa. O primeiro patrocinador foi um produto para a azia. “E aquilo causava azia a muita gente.”

Ruptura é a palavra de ordem. A “Má Língua” abriu caminhos e entretanto um novo mundo erguido pelas redes sociais e pela opinião pública deu um empurrão. Hoje o programa não teria o mesmo impacto – culpa de si próprio e dos precedentes que abriu. Ainda assim, a apresentadora acredita que seria bem–vindo. Sobre a reunião, 20 anos passados, a apresentadora conta que ao início se mostrou céptica mas logo desfrutou. “Ficámos com a sensação que poderíamos voltar a fazer um programa todas as semanas que correria muito bem.” Quer isto dizer que a má língua pode regressar ao pequeno ecrã? Sim e não. A hipótese fica em suspenso. Afinal a televisão mudou, justifica a apresentadora, recordando que agora a ficção, em canal aberto, e mais tarde as séries, na TV Cabo, acabam por monopolizar grande parte do horário tardio.

Na altura nos seus 30, Júlia Pinheiro pretendia especializar-se naquele género. Ainda fez os “Filhos da Nação”, até mais tarde se fixar no entretenimento. “Queridas Manhãs” e “Sabadabadão” fazem os dias da apresentadora de 51 anos. “Tenho uma noção diferente de como se organiza a estrutura do negócio e a componente gasto/custo é muito mais presente. Na altura era uma romântica que andava pelos corredores a inventar programas desvairados.”