António Variações. Aprender a não viver contrafeito


Quem nunca deixou para amanhã o que devia fazer hoje ou teve a certeza de que só estava bem onde não estava? António Variações mudou a música portuguesa com dois álbuns e deu-nos máximas de vida para pensar. Um homem à frente do seu tempo, que nasceu emLugar de Pilar, Braga, e teve como inspiração…


Quem nunca deixou para amanhã o que devia fazer hoje ou teve a certeza de que só estava bem onde não estava? António Variações mudou a música portuguesa com dois álbuns e deu-nos máximas de vida para pensar. Um homem à frente do seu tempo, que nasceu emLugar de Pilar, Braga, e teve como inspiração o cavaquinhoe o acordeão do pai. Numa das últimas entrevistas disse:“Gostaria de me dedicar completamente à música e ter todo o tempo para poder criar novas coisas.” Morreu há 30 anos, no dia de Santo António, 13 de Junho. Recordamos algumas das músicas icónicas, que mostram que a pop também tem mensagem. Para as analisarmos pedimos ajuda à psicóloga Catarina Mexia

É P’ra Amanhã
É p’ra amanhÃ
Bem podias fazer hoje
Porque amanhã sei que voltas a adiar
E tu bem sabes como o tempo foge
Mas nada fazes para o agarrar

Era o primeiro tema do segundo álbum de Variações, que saiu em 1983, “Anjo da Guarda”. Uma letra que conhecemos de cor e salteado e que Catarina Mexia, psicóloga, esclarece melhor. “Se pudesse fazer um diagnóstico, diria que o António Variações está a falar dos procrastinadores, das pessoas que levam uma eternidade a adiar as coisas. Têm dificuldade em aceitar as coisas boas, a simplicidade, porque põem a fasquia demasiado alta e estão constantemente a deixar para amanhã aquilo que sabem que podem fazer hoje, por medo. Com facilidade encontramos essas pessoas que adiam das coisas mais simples, como uma conversa séria com alguém, às mais complicadas, como tomar uma decisão importante em termos profissionais.”

Canção do Engate
Tu estás livre e eu estou livre
E há uma noite para passar
Porque não vamos unidos
Porque não vamos ficar
Na aventura dos sentidos

Um dos grandes êxitos de Variações foi esta canção do engate. Uma proposta simples que no início dos anos 80, pouco depois do fim da ditadura, não era assim tão bem vista. Explica a psicóloga Catarina Mexia: “Há uma coisa a ter em consideração. O António Variações era um tipo muito à frente para o seu tempo, ele aparece em plenos anos 80 a falar sem problemas de como duas pessoas se encontram na noite e pensam: ‘Porque é que não vamos desfrutar do tempo e do corpo?’ Isto para nós é banal, os jovens fazem muito isto. Aquela época estava muito marcada pelas convenções. É como se dissesse às pessoas: vivam a vida, deixem de lado as convenções.”  

Estou Além
Não consigo dominar
Este estado de ansiedade
A pressa de chegar
P’ra não chegar tarde
não sei de que é que eu fujo
Será desta solidão
Mas porque é que eu recuso
Quem querdar-me a mão
 

“As canções de António Variações são muito autobiográficas, esta letra é de alguém que está num impasse terrível na vida e precisa de tomar uma decisão e avançar. Mas tem uma terrível ansiedade em enfrentar o futuro, não consegue lidar com a incerteza e nem sabe como pedir ajuda. É curioso porque as pessoas muito dotadas são as mais frágeis emocionalmente e as que têm maior dificuldade em ir ter com os outros e dizer: ‘Ajuda-me.’” Este tema também tem sido interpretado como uma referência às viagens de Variações, que conheceu África, a Holanda e Nova Iorque.
 

Muda de Vida
Muda de vida se tu não vives satisfeito
Muda de vida, estás sempre a tempo de mudar
Mudar de vida, não deves viver contrafeito
Muda de vida, se há vida em ti a latejar
lll Para a psicóloga esta música é a mais actual de Variações e a mais difícil de pôr em prática. “Acho que podia ser o lema dos dias de hoje. Precisamos desta capacidade de acreditar e arriscar. Estamos cada vez mais num tempo em que os empregos seguros não existem, o que é hoje amanhã não se sabe. Ainda assim, é preciso não continuar a fazer o que nos frustra e nos faz tristes. Está provado que o stresse é fonte de inúmeras doenças, algumas delas gravíssimas. Portanto este grito do muda de vida e faz o que te faz feliz, no fundo faz aquilo que interiormente sentes que é preciso, é a melhor filosofia de vida.”

Quero é viver
Vou viver
até quando eu não sei
que me importao que serei
quero é viver
Amanhã, espero sempre um amanhã
e acreditoque será
mais um prazer

António Variações deixou a sua terra muito cedo porque queria experimentar o mundo e porque “queria viver”, como contou a irmã, Lurdes Ribeiro, ao i em 2009: “Na terra não podia ser quem ele queria, o povo falava muito, criticava.” Mas esta letra também esconde um lado mais pessimista. “É uma letra que quase dava um fado, não? É o toque fatalista dos portugueses, faz parte. É saudável ter esta consciência da morte, mas não podemos viver à sombra dela nem vê-la como uma fatalidade”, defende a psicóloga.

Não Me Consumas
Não me consumas
Não me consumas
Não me consumas mais
Não me consumas mais
Pára de me consumir
Que tu abusas
Que tu abusas
Sempre cada vez mais
Não é fácil digerir
Pára de me consumir

“Existem muitas relações assim. É claramente uma relação abusiva de co-dependência. António Variações queixa–se de uma sensação de abuso por parte do outro, mas a verdade é que está na relação. Essas pessoas ou procuram um psicólogo que ajude a vencer essa co-dependência ou a ajuda dos amigos. Quem se envolve neste tipo de relações tem um medo brutal da solidão, portanto qualquer coisa é melhor que estar sozinho. Muitas vezes reconhecem que estão numa relação destrutiva, mas o medo de ficarem sozinhas é tão forte que é quase impossível pensar noutra situação.”

Rugas
Rugas
já começo a ter as primeiras rugas
Rugas
começam-me a nascer as primeiras rugas
Rugas de chorar
Rugas de sorrir
Rugas de cantar, começo a franzir

Este é um dos temas que foi encontrado entre cassetes do cantor. Era uma gravação caseira que a família partilhou com a editora EMI. As interpretações que podemos tirar daqui são muitas, diz a psicóloga:“É daquelas que tanto podem ser um lamento como uma exultação, como por exemplo mais um ano que passou e se viveu bem.”  

Toma O Comprimido
Você parece doente
Ou anda com a saúde ausente
Decerto tem a testa quente
O mal será desse dente
[…]
Toma um comprimido
Toma um comprimido
Toma um comprimido que isso passa

António Joaquim Rodrigues Ribeiro, que gostava de todo o tipo de música, “jazz, flamenco, fado, folclore, blues, faço um apanhado”, disse numa entrevista, também estava atento aos hábitos da sociedade. Como neste caso:“Esta é uma música em que tenta chamar a atenção para a tendência para a normalização da sociedade. Que as pessoas não sejam carneirinhos e que não recorram tanto aos comprimidos”, diz a psicóloga.