Bruno Vieira Amaral. “Não quero viver da escrita, isso é uma armadilha”

Bruno Vieira Amaral. “Não quero viver da escrita, isso é uma armadilha”


A frase é do autor que lança agora o seu primeiro romance. E é uma “verdade fictícia”, como a história de “As Primeiras Coisas”.


Primeiro publicou "Guia para 50 Personagens da Ficção Portuguesa" e só agora se aventura na ficção. O primeiro e brilhante romance viaja até ao bairro Amélia, onde o narrador regressa a casa para reencontrar vizinhos, amigos e conhecidos, mais os fantasmas do passado. Saindo de Lisboa, do outro lado do Tejo, tal como o autor, na verdade. Daí que a confusão saudável dê início à conversa.

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É fácil dizer que há algo de autobiográfico neste livro.

Mesmo para os escritores de ficção científica haverá algo de autobiográfico para compor personagens e ilustrar situações. Há coisas baseadas em pessoas que conheci. Noutras o ponto de partida foi a imaginação, mas para lhes dar verosimilhança usei elementos que conheço. Apesar de toda a história ser inventada, cheguei a imaginar corpos para algumas das personagens. Mas para o leitor não interessa se o que está no livro aconteceu, só uma minoria quer saber, como os curiosos pelos truques de magia.

É um método, apenas isso.

Sim, e quando se explica o método as coisas deixam de ter piada. A graça é imaginar enquanto se lê. Mas escrever desta forma aproxima o leitor do autor, é um recurso literário, um truque sujo, quase como roubar doces às crianças. Deixarmos a pergunta no leitor: "Quem é que está aqui, será o Bruno?" É isso que eu procuro. Como na escrita do Salinger, é uma confusão que é boa, onde começa a personagem e acaba o narrador. O Vargas Llosa faz um bocado isso, ou o Milan Kundera. Ou como dizia o Hitchcock, "play them like an organ", deixar as pessoas na incerteza. É só mais uma forma de conseguirmos o que queremos, ou de "levar a água ao seu Mourinho", como diria o "Quem Quer Ser Milionário".

Quando mostrou o livro a alguém pela primeira vez, foi a alguém que podia confundir a história do autor com a do livro?

Não. A primeira pessoa a quem mostrei o livro foi ao José Rentes de Carvalho. Porque somos amigos, acho que não é muito presunçoso da minha parte dizê–lo, tenho esse privilégio. Enviei-lhe o livro quase finalizado para que ele me dissesse o que achava. Ele deu-me uma opinião literária, não foi pessoal. Ele já me tinha dito antes algo como "não se exponha demasiado, porque a dada altura isso pode fugir-lhe ao controlo".

E concorda?

Nem por isso. A não ser que seja de facto uma autobiografia. Porque ao dizer que é uma autobiografia ou um romance estabeleço um contrato de leitura com a outra pessoa. Suponhamos que este livro é traduzido e publicado na China. O chinês que me ler não tem de saber quem sou eu nem qual é a minha história. Ou um esquimó. Ao esquimó não interessa quem sou, o que é um bairro social.

Há muitas personagens e todas estão interligadas. Demorou muito tempo a terminar o livro?

Não sabia muito bem como transformar esta ideia em livro. Tentei fazer uma obra com arcos narrativos mais convencionais. Mas ao fim de 30, 40 páginas parecia tudo artificial. E roubava magia às personagens. Em conversa com o Francisco José Viegas, o editor, ele dizia-me "mas escreve como estás a pensar, com retratos autónomos". Aos poucos fui então descobrindo a estrutura que mantinha a força das histórias, juntando-as, ainda assim. Mas há quem não goste.

Do quê?

Da estrutura do livro. Já me disseram "gosto das histórias mas não gosto da estrutura". Mas as coisas não são autónomas, não é possível separar. Ou se gosta de tudo ou então é melhor ler outro livro. Faz lembrar aquele comentário de alguns brasileiros: "Devíamos era ter sido colonizados pelos holandeses ou pelos ingleses." À espera que depois fossem brasileiros na mesma e dançassem o samba. Não ia resultar. E eu é que sou o autor. Não vai dar, eu tentei.

Além do narrador, há um bairro, o bairro Amélia, que pode ser confundido com o bairro onde cresceu.

Nem sequer têm o mesmo nome, criei outro. Se disser que uma história se passa na Cova da Moura ou na Bela Vista, isso vai motivar leituras sociológicas, as pessoas vão esperar a realidade como ela é. Procuro mais o que Vargas Llosa chama "realidade fictícia". Porque se usar um sítio verdadeiro como cenário vai aparecer alguém a dizer "atenção que isto não é bem assim". Claro, mas a ficção não é "bem assim".

Não começou pelo romance, só agora ao segundo livro. Porquê.

Trabalho no meio editorial e vejo muita coisa. Pensei mais nos detalhes, fui estudando, com mais calma, o que queria. E quis começar por algo que não era um romance. Para não ter logo aquele peso do romancista, do escritor. Porque isso traz uma série de formalidades que não queria. E se começasse pelo romance era mais difícil fazer aquele primeiro livro. Quero escrever, mas coisas diferentes. E além disso faço outras coisas, tenho um emprego. Viver da escrita é uma armadilha.

Porquê?

Porque obriga a uma desmultiplicação. Não quero viver da escrita e por isso tenho de ter outras actividades. Acabo por trabalhar no meio editorial, na editora que lança este livro, por acaso, mas isso condiciona o acto de escrever livros como qualquer outra profissão.

Mas os escritores não ambicionam o ideal de ter uma casa perfeita, com todo o tempo do mundo para escrever, algo assim?

Claro. Mas não agora, isso é impossível. Sei como o meio funciona. Essa aspiração é legítima, Mas obriga a decisões que podem ser más a médio, longo prazo para o trabalho do escritor. Muita produção, com um ritmo que rouba a liberdade de dizer "vou escrever quando me apetecer".

Tem tido boas críticas, pode ser o princípio de um percurso de sucesso.

Não devemos confiar muito na influência que a crítica tem na venda de livros. É reduzida. É bom para mim, toda a gente prefere elogios. É bom para a editora e também para quem selecciona frases para a contracapa. Há um óptimo exemplo, a JK Rowling lançou há pouco tempo um livro com um pseudónimo. Até teve boas críticas, mas antes de revelarem o nome verdadeiro da autora o livro vendeu-se muito pouco.

Este fim-de-semana tem várias sessões de autógrafos, é um bom sinal.

Mas provavelmente não está lá ninguém e acabo por não dar autógrafos. Falamos com os livreiros, é um ambiente porreiro, que nos tira do mundo das críticas. Se aparece alguém dou um grande abraço, agradeço muito. São situações difíceis para os autores, a não ser que haja uma fila de leitores. E não é por eu trabalhar no meio editorial que vou lá ter mais gente.

Tem autógrafos de escritores?

Tenho. Fiz questão de pedir um ao Rubem Fonseca quando ele esteve cá, parecia uma criança. Há um lado fetichista, infantil, é como ter um autógrafo de um jogador da bola. E ao mesmo tempo é irresistível. E aí os autógrafos nem são tão importantes.

Não tanto como conhecer um escritor.

Claro. Gostava de conhecer o Vargas Llosa. Ou o García Márquez. Mas quem é que não gostava? E ponho-me na pele desses autores, que devem estar fartos de pessoas como eu. Mais vale ter uma estátua, como o Eusébio ou o Pessoa. Quando era miúdo fui ao Estádio da Luz pedir autógrafos aos jogadores do Benfica. Estava lá o Eusébio e pedi-lhe para tirar uma fotografia comigo. Na foto, eu estou a rir e ele está como se nada fosse. Com os escritores é o mesmo. Além dos leitores que se julgam amigos do autor.

Só porque leram o livro.

Sim. E há leitores inconvenientes e mal educados. Mas enfim, isso faz parte do fascínio da literatura. Voltando ao Salinger, ele escreveu que "o bom autor é aquele a quem quero ligar depois de ler o livro". Mas é preciso alguma calma, mesmo que tenhamos a sensação que o escritor nos conhece, que escreveu de propósito para nós. É um jogo mágico mas também é perigoso. Como o futebol.

Jogadores da bola, gostava de conhecer algum?

O Aimar. E, claro, o Maradona. Sempre fui pró-Argentina. Sempre detestei a selecção brasileira. Havia aquela obrigação de apoiar o Brasil quando não íamos ao mundial mas eu nunca o fiz. E praticamente não me lembro da participação portuguesa no Mundial de 86 mas lembro-me da participação da Argentina, ainda hoje sei o 11 da Argentina. Fiquei atónito quando o Caniggia veio para o Benfica. E pedi-lhe um autógrafo. Não acreditava naquilo, estava a viver um sonho. O Caniggia, que eliminou o Brasil no Mundial de 90 depois de um passe magnífico do Maradona. E veio para o Benfica. Quando foi o Aimar, bom… Gostava de o conhecer. É um grande escritor de futebol.