Animalescos”, publicado em Junho, é o 32.º livro de Gonçalo M. Tavares, escritor nascido em 1970. Ou antes, é o 32.º caderno, como reivindica o autor. “Caderno” situa mais imediatamente o autor no campo literário do que o faria a palavra “livro”, mais facilmente integrável na classe das mercadorias. Gonçalo M. Tavares ocupa um lugar no campo literário pouco permeável ao show business com que muitos colegas de geração se entretêm. Aliás, é suficientemente ilustrativo disto o facto de “animalescos” ter surgido sorrateiramente nos escaparates das livrarias. É sabido ainda que as obras do autor, depois de alguns anos em repouso na gaveta, são alvo duma reescrita intensa, marcada pela rasura, pela depuração textual. É este método conforme ao despojamento característico da sua postura em relação ao mercado das letras.
Tem por hábito o autor arrumar os cadernos que constituem a sua obra duma forma organizada, agrupando-os em séries, cujas fronteiras não são necessariamente as de género. Disse Gonçalo M. Tavares numa entrevista recente que o mais importante num texto literário seria não tanto o género em que se enquadra, mas o modo como determinado tema foi tratado. Isto é, a forma não se pode constituir obstáculo ao exaurir do tema. Daí que ocorram três fenómenos: (i) as categorias de género sejam redefinidas na sua obra; (ii) o ensaio se constitua como género que vai minando a “natureza” dos géneros literários (poesia, romance, conto, texto dramatúrgico); e (iii) possamos ver, de forma panorâmica, a obra de Gonçalo M. Tavares como uma reflexão incansável (nomeadamente, sobre (o) ser humano).
Interessa-me interrogar a linguagem de “animalescos” – comum aos outros volumes da série “Canções”, sobretudo a “Canções Mexicanas” – para, depois, me focar em algumas das isotopias transversais a todo o território textual do autor.
Se, de facto, existem velocidades de leitura, então “animalescos” terá de ser lido avidamente, não instituísse a sintaxe um ritmo vertiginoso. Nas pequenas ficções que compõem o livro, a pausa prosódica é marcada, geralmente, apenas com vírgula, não existem parágrafos e abundam as repetições lexicais e estruturais. Os assuntos mesclam-se indefinidamente, as associações multiplicam-se, a desconexão e a fragmentariedade ampliam–se, de maneira que possa falar a “quarta pessoa do singular”: o fundo informe e indiferenciado, que não é sujeito ou indivíduo, com a sua voz de cólera e embriaguez. Aproxima-se, assim, este discurso daquele que seria o do esquizofrénico, tal como o entende Gilles Deleuze (filósofo citado em epígrafe) – um discurso que não está territorializado nem preso a normas estéticas, a preceitos de género, ao classicismo narrativo e estilístico. O narrador destas ficções adopta um discurso desterritorializado, comunicando experiências, intensidades, sensações, não tanto ideias claras e distintas. Aliás, Gonçalo M. Tavares parece nortear-se por aquele preceito modernista que manda que cada obra seja radicalmente diferente da anterior (confrontem-se, v. g., “Jerusalém” com “O senhor Valéry”, “1” com “Livro da Dança”, “Uma viagem à Índia” com “A colher” de Samuel Beckett). Apesar disso, em “animalescos” encontram-se algumas das obsessões presentes noutras obras, ínsitas nestes textos – sou conscientemente impreciso – habitados pelo absurdo, pelo grotesco e pela loucura.
O interesse do livro não reside tanto na ínfima, quando não inexistente, estrutura narrativa dos textos, porém no modo primitivista, visceral, de reflectir sobre o ser humano, o que contrasta com a sintaxe límpida e com a forma clássica de narrar que mais rapidamente consideramos marcas estilísticas do autor. É por isso que tanto “animalescos” como “Canções Mexicanas” são inesperados (em menor grau, a meu ver, “Água”, “Cão”, “Cavalo”, “Cabeça”). E ambas as obras, evocando o Herberto Hélder de “Photomaton & Vox”, se configuram como ferramentas para “acordar as vísceras”. É adoptado um registo oposto ao cerebral para se captar com mais acuidade a singularidade de cada acontecimento. Nesse sentido, a deformação, já presente no quadro de Bacon escolhido para capa, é genológica, primeiramente; depois, é quanto aos modos, ou à falta deles, de narrar e de reflectir (reversivelmente, a mancha em Bacon). O saldo de tudo poderia ser o seguinte: a colocação ad oculos da carniça também constitutiva dos humanos.
“animalescos” é um título impreciso, se o que se pretende é qualificar a repelência moral de actos humanos. “Humanescos”, como Gonçalo M. Tavares disse numa entrevista, seria mais preciso. Continuamos neste livro num terreno sem bem nem mal, sem deus nem deuses: imanente. Na mesma entrevista, o autor afirmou que vivemos em queda, o que explica o primeiro sonho de “O senhor Calvino”. Caindo, todas as virtudes humanas desaparecem, de nada valendo sermos inteligentes, bonitos, fortes, rápidos: “avanço na queda como alguém que julgasse que pode acelerar esse movimento, não te apresses, os rápidos, os lentos, todos caem à mesma velocidade, eis o que me ensinaram, podes ser campeão de cem metros, podes não ter capacidade para mexer um pé, estás de cadeira de rodas e cais mais rápido do que o atleta, eis como são as coisas e como a queda substitui deus nos pormenores, eis que a queda nivela, meu querido” (p. 12).
Quando forçados a sobreviver, desaparecem-nos todos os predicados, a voracidade da queda é o agente. É vedado aos sujeitos agenciar, são eles educados por um sedentarismo identitário (como um louco o é, entre as páginas 18 e 19) para funcionarem sem falhas, para orientarem os seus gestos para o útil – como homens pré-históricos: “os homens da pré-história não faziam bailes, pelo contrário, estavam sempre apressados, não andavam à roda como os malucos que dançam, que dançar é também isso: não ter pressa, não ter medo, os animais não dançam e os homens primitivos não dançavam” (p. 37). Estamos em queda, lutamos pela sobrevivência; o darwinismo é extensivo a todos os planos, incluindo o intelectual: “: há armas e violência, um pensamento não combate como as meninas: não se trata de puxar os cabelos ao pensamento que se lhe opõe, trata-se de outra coisa, outros actos, bem diferentes, os movimentos do pensamento atiram-se às partes débeis do outro, não têm piedade física nem moral, o combate é para vencer não é para que se tirem fotografias dos combatentes, não se trata de uma questão estética mas de uma questão animalesca de território” (p. 41). Os homens entendem apenas a linguagem da força que a técnica veio intensificar: “é a velocidade que dá vida à natureza, a velocidade violenta da bala que entra no solo transmite uma energia que mais nenhum gesto manso pode alguma vez conseguir” (p. 45).
Se pudesse numa frase resumir este livro, servir-me-ia desta de “Lógica do Sentido” de Gilles Deleuze, que cito da tradução brasileira: “Máquina dionisíaca de produzir o sentido e em que o não-senso e o sentido não estão mais numa oposição simples, mas co-presentes um ao outro em um novo discurso” (p. 110).