Vilar de Mouros. “As drogas circularam e o sexo fez-se”


“Quando estava a tocar no Quinteto Académico, uma das nossas paragens normais era na Pastelaria Tarantela em Lisboa”, conta José Manuel Fonseca, responsável pelo clarinete e conhecido como o “Gaitinhas” na banda lisboeta. “No café um médico, de que já não recordo o nome, disse para irmos tocar em Vilar de Mouros.” O médico em…


“Quando estava a tocar no Quinteto Académico, uma das nossas paragens normais era na Pastelaria Tarantela em Lisboa”, conta José Manuel Fonseca, responsável pelo clarinete e conhecido como o “Gaitinhas” na banda lisboeta. “No café um médico, de que já não recordo o nome, disse para irmos tocar em Vilar de Mouros.” O médico em questão era António Augusti Barge, nascido na freguesia de Venade em 1917 e empenhado em tornar Vilar de Mouros um destino obrigatório para os portugueses.

Apesar de a edição de 1971 ser considerada por muitos o primeiro Vilar de Mouros, em 1968 o espaço de concertos era o mesmo, assim como o organizador e o nome do festival. “Na altura achámos muito estranho juntar todos aqueles nomes em Vilar de Mouros”, confessa José, garantindo que o Quinteto Académico aparece porque “já tinha uma certa projecção em bailaricos”. Quando a banda chega à pequena vila encontra uma população dinamizada pelo Dr. Barge, onde “as pessoas da zona é que nos ofereciam o vinho, pão e os borregos”. Em casa do médico dormiu grande parte do cartaz da noite, em que estava incluído o Quinteto, mas também Zeca Afonso, Carlos Paredes, Adriano Correia de Oliveira e a Banda da Guarda Nacional Republicana. A grande surpresa ainda estava para acontecer, com todas as previsões do médico de Vilar de Mouros a saírem certeiras. “Na altura foi uma das maiores multidões que tinha visto, ninguém estava à espera.”

“O palco era muito simples”, lembra José, uma dos poucos músicos que ainda podem contar a história. Para o evento, o Quinteto Académico decide encomendar uma aparelhagem dos EUA, com uns muito modestos 200 watts. “Na altura não era nada mau, tinha duas colunas pequenas e fizemos uma ligação a mais duas, para as pessoas ouvirem no recinto.” O sistema de som artesanal era suficientemente profissional para servir para todos os músicos da noite, com um espantando Zeca Afonso a dizer, “Opá, parece que estou em casa”. O foco da noite estava mesmo nas palavras do cantor de Aveiro. Com a primavera marcelista acabada de florescer, o público procurava incentivos de liberdade.

Em grande massa apareceu a PIDE, atenta a Zeca Afonso, mas também a qualquer outro desvio de comportamento. “A PIDE estava sempre atrás de nós nos concertos, chegaram a prender o baterista Artur Pinto, e o meu cunhado, que era técnico de som, teve que fazer o possível com as baquetas”, recorda José. Outra aflição para o Quinteto era o serviço militar, desfalcando grande parte da banda, que acabou por encontrar um novo vocalista em pleno Vilar de Mouros. “Vimos o Earl Jordan a cantar e ficámos convencidos.” A banda não durou muito mais tempo, ficando no Minho uma noite imperdível que a própria população de Vilar de Mouros já esqueceu.

O Woodstock português Durante três longos anos, António Barge planeou uma sequela mais ambiciosa, que acompanhasse o novo gosto universal pela música britânica. The Rolling Stones, Pink Floyd ou Black Sabbath foram hipóteses, mas a decisão final recaiu sobre Elton John, uma nova revelação do piano que pedia apenas 600 contos.

De Londres ao Porto estava uma curta viagem de avião, o mesmo meio de transporte que o pianista usava quando tentamos contactá-lo. “Foi hoje para o Rio de Janeiro”, diz a assessora de imprensa. Apesar de Elton estar incontactável, no mesmo voo de 1971 estavam os Manfred Mann, disponíveis para uma conversa telefónica. “No avião foi uma grande festa, só quando chegámos é que percebemos que nunca tinha havido nada assim em Portugal”, diz-nos o próprio Manfred Mann, fundador da banda. No recinto estavam 20 mil pessoas expectantes, em completo uníssono com o flower power americano, acampadas um pouco por toda a vila.

“Foi a primeira grande manifestação livre na música em Portugal”, confirma Tozé Brito, o membro mais recente do Quarteto 1111, que tocou nos dois dias do festival. A banda psicadélica de José Cid ainda estava em ressaca de um concerto tumultuoso no Colégio Salesiano do Estoril, que acabou em campo de batalha com a PIDE. “Em Vilar de Mouros só de olhar para eles sabíamos quem eles eram”, indica Tozé Brito, recordando no entanto que, “como estávamos nos confins de Portugal a PIDE estava muito mais relaxada”. Manfred Mann, que já tinha vivido o auge da Swinging London e ainda o fim da década de 60, achou toda a organização um pouco estranha. “Na hora do concerto estava tudo vestido a flower power e quando subi para o palco um segurança gigante não me deixou entrar e disse: “onde é que acha que vai?” Conseguiu atrasar 15 minutos o concerto.” No fim foi tudo desculpado porque os incidentes foram poucos, consequência de uma forte presença da imprensa internacional.

“Nós aproveitámos a deixa para abrir o concerto com “Glory Glory Hallelujah”, um hino da guerra civil americana, para dizer que éramos contra qualquer tipo de escravatura”, indica triunfante Tozé Brito. No segundo dia, para agradar aos mais velhos, ainda subiram ao palco Amália Rodrigues e o Duo Ouro Negro, contrastando com os hippies portugueses que deixavam um aroma constante no ar. “As drogas circularam e o sexo fez-se”, indica Tozé, lembrando-se ainda que “muitas pessoas ficaram por lá alguns anos, fizeram hortas e criaram porcos”. Entre hippies, PIDES nervosos e os Manfred Mann “um pouco pedrados” (garantia do próprio), o músico português mantém uma certeza: “Nunca mais me vou esquecer desses dias, foi a primeira vez que toquei com sentimento de liberdade.”

O ano dos mosquitos Apesar do sucesso da edição 1971 entre o público e músicos, financeiramente foi um grande prejuízo, que obrigou António Barge a entrar num hiato de 11 anos. Quando decidiu regressar, a música tinha mudado, as revoluções de 60 estavam apagadas e surgia uma nova década de new wave, pós-punk e uma dose considerável de preto e laca.

“Tens a certeza que estavam lá os The Stranglers e U2?”, pergunta Ian McCulloch, vocalista dos Echo & the Bunnymen, directamente de Liverpool. A memória está enferrujada, mas nada como uma mordidela para recordar um concerto com 31 anos. “Já me lembro”, grita o vocalista, “havia centenas de mosquitos, entrei no palco todo inchado com medo que alguém reparasse.” O ano de 1982 ficou conhecido por esta praga, Rui Reininho confirma: “Havia milhares de mosquitos, mas também outras coisas muito mais interessantes como ácidos fantásticos.” “A minha mãe não me deixou ir em 1971”, confessa o vocalista dos GNR, que, tal como o resto do público, estava com sede de viver uma sequela do Woodstock português.

No palco estavam U2, The Stranglers, GNR, Jafumega e Sun Ra Arkestra, um elenco de luxo, que serviu de espelho perfeito para as novas explorações sonoras. “Mesmo nessa altura era muito pouco comum partilhar o palco com tantas bandas da nossa onda”, confirma Ian, garantindo ainda que “até então foi a maior multidão para que tínhamos tocado”. Na calha estava o único sucesso “The Back of Love”, servindo para “ficarmos naquela caixa das grandes novidades, como os New Order e The Smiths”. Nos bastidores as bandas conviviam, antes do tempo das limusinas e dos pedidos extravagantes, e o Dr. Barge dizia sempre antes do concerto: “Loucura controlada.”

“Achei estranho chegar lá e conhecer um rapaz de botas de motoqueiro e cabelo comprido que se chamava Bono”, diz agora Reininho. Os U2 ainda davam passos de bebé, com apenas dois álbuns nas contas e segundo um mito de Vilar de Mouros foram pagos em cerveja. “Na altura era tudo muito diferente, nós acabámos de tocar e eles queriam logo saber quem nós éramos, ficámos um bocado à conversa”, recorda Mário Barreiros, dos Jafumega, banda de abertura dos irlandeses. Para as bandas portuguesas foi o maior palco em que tinham tocado, no auge do chamado “boom do rock português”. “O pós-25 de Abril foi um período de descoberta, nunca mais se vai repetir a forma que se viveu nesse período”, reflecte Mário.

“Agora lembro-me de tudo, impressionante”, diz-nos Ian. No dia 16 de Agosto, os Echo & the Bunnymen voltam a Portugal, desta feita no Vodafone Paredes de Coura. Agora que obrigamos Ian a pesquisar na memória, o vocalista deixa uma garantia: “Não me vou esquecer do spray para mosquitos.”

A bonança, a tempestade e a nova vida. Como já era quase tradição, a população de Vilar de Mouros teve de esperar mais 14 anos para ver outra edição do festival. O renascimento foi obra da promotora Porto Eventos, que substituiu a organização amadora de António Barge por uma encarnação em festival anual com dois palcos, stands de cerveja e bifanas. Em 1996 chegaram os The Stone Roses e os Xutos & Pontapés. A banda portuguesa iria pisar o palco mais duas vezes (2001 e 2006).

Em 2002 morreu o Dr. Barge, símbolo do festival e, nas palavras de Tózé Brito, “um visionário, melómano e que no fim, conseguiu meter a vila no mapa”. Entre 1996 e 2006 passaram pelo Minho veteranos como Bob Dylan, Neil Young e Robert Palt ou bandas em perfeita sintonia com o seu tempo, como Sonic Youth, Ben Harper e Pj Harvey. O ano de 2007 iria receber pela primeira vez em Portugal o ex-Beach Boy Brian Wilson, mas um mês antes da data, a Porto Eventos cancelou o festival e rompeu o acordo com a Câmara Municipal de Caminha. “Basicamente a promotora disse que não disponibilizámos o valor combinado”, indica um assessor da câmara, concluindo que “acabou por ser uma falha de comunicação”.

Há novo regresso do festival marcado para 2014, e os responsáveis pela revitalização não podiam ser mais inesperados. “Tivemos muita pena que o festival tenha acabado e decidimos fazer qualquer coisa quanto a isso”, explica Pedro Neves, presidente da Associação de Amigos do Autismo (AMA). A sede actual da AMA é em Viana de Castelo e o acordo de quatro anos com a Câmara Municipal de Caminha tem o objectivo de construir um espaço novo e maior. Entre Optimus Alive, Super Bock Super Rock e Optimus Primavera Sound, perguntamos se Vilar de Mouros vai sobreviver numa piscina cheia de tubarões. “Já estamos a trabalhar o cartaz e vai ser como sempre foi: único e melhor que qualquer outro festival.” Fica a garantida de quem já esteve no recinto mais antigo de Portugal.