Assim que chegamos, avisa que a entrevista não poderá durar muito tempo, pois tem que estar na porta para receber os hóspedes. Diz também que, a qualquer altura, a nossa conversa poderá ser interrompida. Nem passam 30 minutos e o esperado acontece. Chega um hóspede que exige a sua atenção. Só meia hora depois é que continuamos, mas a conversa não pode ultrapassar os 20 minutos. O seu dia-a-dia é mesmo assim. Hóspede vai, hóspede vem, e quase todos são recebidos por um aperto de mão do porteiro da casa. Cada um deixa um emblema no casaco de Luís Nhaca, como lembrança.
Qual é a sua missão como doorman?
O doorman é uma tradição que o hotel adopta há já alguns anos. Foi tirada da tradição inglesa. O doorman é o reflexo do hotel. É quem recebe todos os clientes. Muitos hóspedes escolhem este hotel pela sua história e antiguidade, pelos nomes que por ele já passaram e continuam a passar. Cada um traz um emblema ou envia-o por alguém que venha. Todos eles já me conhecem. As pessoas vão recomendando o hotel umas às outras.
Como se resume o seu dia-a-dia?
Recebo as pessoas com carinho e um sorriso sincero e desejo-lhes as boas vindas. Eles devem sentir-se em casa ou até mais acarinhados do que nas suas próprias casas. E faço isso todos os dias. Mesmo hoje, eu acabava de assumir o posto quando, de repente, apareceu uma criança a gritar. O miúdo abraçou-me com muito entusiasmo e a mãe também se lhe juntou. Ele já sabia quem eu era. Sou capaz de dizer que tenho mais família cá no hotel que na minha própria casa. Muitos hóspedes ficam tristes na hora de partirem, porque queriam ficar mais tempo.
Como é esse carinho que as pessoas têm por si?
Penso que se me acarinham, eu sou o primeiro a mostrar esse carinho por eles. Este casaco atrai muitos olhares, e eu acabo conquistando os clientes sem me aperceber. Trato a todos de igual maneira. Não faço ideia de quantas fotos as pessoas tiram comigo por dia.
Como reagem os seus colegas perante tamanho ‘assédio’?
Existem alguns com má-fé, que se sentem incomodados. Mas há outros que, pelo contrário, me apoiam e encaram este carinho como um benefício para o hotel.
Teve de aprender algum idioma por causa do seu trabalho?
Saber saudar e desejar as boas vindas em diferentes línguas é essencial. Tenho amigos de diferentes nacionalidades e são eles que me ensinam a saudá-los e dar-lhes as boas vindas no seu idioma. Uma vez, veio a delegação da embaixada da Turquia. Eu saudei-os na sua língua. Todos ficaram espantados, e perguntaram se eu realmente era moçambicano. Isto funciona assim. É preciso criar amizades logo na porta para satisfazer o cliente e para que ele se sinta em casa.
Este foi o seu primeiro trabalho no hotel?
Não. Quando tinha 18 anos, era preciso ir para o Serviço Militar Obrigatório. Quem não trabalhasse, tinha que ir para a tropa. O meu pai conseguiu arranjar-me um emprego aqui no hotel. Comecei no dia 15 de Outubro de 1979 como jardineiro e, mais tarde, passei para o economato. Trabalhava para me esconder do Serviço Militar Obrigatório. Mas a minha fuga teve pernas curtas. Enquanto trabalhava no hotel, chegou uma lista dos apurados para o Serviço Militar e o meu nome estava lá. Na verdade, não tinha uma vaga ideia do que era a tropa. Quando soube que tinha sido apurado, fui comprar uma mala. Coloquei lá toda a minha roupa e mantas. A ideia que eu tinha era de que se tratava de uma casa, onde estaríamos hospedados. Eu não podia chegar de qualquer maneira.
E chegou a ir para a tropa?
Quando me apresentei no centro de recrutamento disseram-me que o meu grupo já tinha partido no dia anterior e que se precisassem de mim voltariam a chamar-me. Continuei então a trabalhar no economato do hotel. Mais tarde, fui transferido para a lavandaria e trabalhava como controlador das roupas dos hóspedes.
Trabalhava com o seu pai?
Não na mesma área. O meu pai vivia no bairro Polana Caniço. Quando entrei no hotel, ele já estava lá. Ele começara a trabalhar no Hotel Polana ainda jovem e estava na área de canalização. Naquela altura, todo o nosso sustento vinha deste hotel. Ele não chegou a ser doorman, trabalhou sempre noutras áreas. O meu avô também passou por aqui. Eu trabalho no Polana há 34 anos. Quando fomos admitidos recebemos instruções de como devíamos trabalhar. Houve muitas pessoas que não duraram muito tempo nesta empresa, exactamente por não seguirem as regras, ensinamentos e o respeito que nos era transmitido. Até os que estão a ser admitidos hoje devem seguir essa nossa tradição, para não deixarmos cair as cinco estrelas que temos.
Quando se estreou como doorman?
Antes havia um senhor chamado Albino, que foi o primeiro doorman do hotel. Quatro anos depois do seu falecimento, o hotel continuava sem ninguém para substituí-lo. Certo dia, o meu chefe perguntou-me se eu estaria interessado em ocupar aquele lugar. Eu estava receoso. Fui pedir opinião ao meu irmão e ele respondeu que, caso eu negasse, os meus chefes poderiam prejudicar-me. Ele acrescentou que se entre tantos trabalhadores eles me tinham escolhido era porque tinham confiança em mim.
Qual era o seu receio?
Não sei ao certo. Apenas não queria estar envolvido em problemas. Sempre fui assim, nunca gostei de confusões no trabalho. Mas decidi acatar os conselhos do meu irmão e aceitei a proposta. Levaram-me à porta, apresentaram-me o lugar e o que devia fazer. Apesar do meu receio, eles garantiram que com o tempo me adaptaria. Já são quase 12 anos à porta.
Como se saiu?
Realmente, com o tempo, fui-me adaptando ao trabalho. Os hóspedes começaram a habituar-se a mim. Hoje em dia, se chegam nas minhas folgas começam a cobrar. Querem ver-me e tirar fotos comigo. Nós temos recebido Presidentes, delegações presidenciais da CPLP, etc., e todos gostam de me ver à porta.
Por que acha que foi escolhido pelos seus chefes?
Sinceramente, não sei. Não submeti pedido para estar aqui. O hotel é que me escolheu. Não disputei o lugar com ninguém. Eles é que vieram à minha procura. Por isso mesmo é que eu devo dar o meu máximo pelo posto que ocupo.
Fale-nos do seu casaco…
Quando assumi o posto comecei a usar um novo casaco. Hoje já tenho três, porque os emblemas já não cabem apenas num.
Está há apenas 12 anos como doorman, e já conseguiu preencher três casacos…
Nestes casacos estão contidos emblemas das empresas e bandeiras. São os clientes que trazem os emblemas porque sabem que esta é uma tradição deste hotel. Este casaco que trago tem um total de 395 emblemas e os outros dois têm 260 cada.
Qual foi o primeiro emblema a ser colocado?
O ministro de Cuba inaugurou o meu casaco colocando a bandeira de Cuba. Nessa altura, eu ainda não tinha ideia do significado daquilo. Só mais tarde, quando começaram a aparecer mais hóspedes a colocar os seus emblemas, é que comecei a ganhar ânimo. O antigo Presidente do Brasil, Lula da Silva, também me encantou pela sua espontaneidade e o à vontade a colocar o emblema. Ele disse-me: ‘Sr. Luís Nhaca, gostei de vê-lo assim. Faz favor fotógrafo, tire bem esta foto que eu quero fazê-la chegar ao Sr. Luis Nhaca. Eu gostei muito dele, porque recebeu-me e voltarei mais vezes a este hotel’. Ele colocou dois emblemas, um do seu partido e outro da sua bandeira. Já veio também o Bill Clinton. São estrelas que quando chegam e não me encontram ficam logo desmoralizadas.
Não consegue então folgar muitas vezes?
As minhas férias são limitadas. Quando pretendo viajar tenho sempre de dizer para que país vou e quanto tempo irei. Os meus chefes confirmam na agenda se eu posso ir e, às vezes, não dá. Por outro lado, mesmo estando de férias, tenho que vir trabalhar. Vezes há em que fico doente e o meu director fica sem saber o que fazer, quem irá receber os hóspedes. E ligam-me a perguntar se não aguento pelo menos ali ficar por um curto tempo na porta. O meu horário normal é das sete às 16 horas, mas por vezes só tenho horário de entrada. Há situações em que por estar um chefe de Estado hospedado no hotel e por não se saber quantas vezes e a que horas ele irá sair, tenho que ficar. Vezes há em que não consigo respeitar o horário de almoço. O meu trabalho é muito complicado nesse sentido. Há dias em que não tenho direito a folga (que é aos sábados e domingos) porque está aqui um chefe de Estado hospedado. Se ele sair apenas de madrugada eu tenho que estar ali. Nestes casos, passo a noite num espaço disponibilizado pelo hotel.
Onde é que vive?
Eu estou no bairro Polana Caniço ‘B’, onde vivia com o meu pai.
Se não fosse doorman, o que gostava de ser?
Não saberia dizer. Deus é quem escreve tudo o que vai acontecer a cada um de nós.
É também jogador de golfe…
Comecei a praticar ainda em criança, porque naquela altura a minha casa estava próxima de um campo de golfe. Quando os colonos jogavam, nós observávamo-los. Quando comecei a trabalhar fiz parte da equipa de futebol recreactivo do hotel e era guarda-redes. Passado algum tempo tive um pequeno desentendimento com o delegado da equipa e aí decidi largar o futebol e dedicar-me ao golfe.
Chegou a destacar-se nessa modalidade?
Três meses após ter começado a jogar, soube que a TAP estava a patrocinar um torneio internacional. Em 1992 consegui conquistar o primeiro lugar cá em Moçambique. O vencedor ia representar o seu país no Algarve, em Portugal. Lá, consegui ocupar o terceiro lugar. Foi uma viagem que não esperava realizar. Esta modalidade já me levou ao Zimbábwe, Swazilândia, Namíbia, Malawi, África do Sul, Quénia. Em Abril do próximo ano vamos a Cape Town, na África do Sul.
Durante esses dias teve que faltar ao serviço…
Foi nos dias de folga. Mas também, se não for o caso, o hotel respeita.
Que avaliação faz desta modalidade no país…
O golfe é valorizado, mas não é publicitado. Este é um jogo de elite. É graças à independência que estamos a jogar golfe.
Disse que começou a ter contacto com esta modalidade porque a sua casa ficava perto de um campo de golfe. Onde é que cresceu?
No distrito de Marracuene, na zona da praia de Macaneta. Era mesmo ao pé do mar e não tínhamos vizinhos. Estávamos isolados, só a família Nhaca estava naquela zona. Não havia amigos com quem brincar. Naquela altura, nem havia o batelão que dá acesso ao outro lado do distrito de Marracuene. O nosso pai vivia e trabalhava na cidade de Maputo. Por vezes, íamos visitá-lo em pequenas barquetas.
Como era feita essa viagem?
Chegados à margem tínhamos que continuar o percurso de cerca de 10 quilómetros a pé, num caminho de areal. Era um grande sofrimento. A nossa mãe carregava trochas e o meu irmão mais velho levava-me ao colo. Eu chorava muito e até ele acabava por chorar do cansaço. Chegávamos a uma loja onde o dono deitava água fria numa bacia e misturava com açúcar e dava-nos aquilo para tomar feito chá, acompanhado de um pão. Era isso que nos permitia continuar a caminhada até chegar a casa. Era sempre um problema para a nossa mãe levar-nos à cidade por causa desses transtornos no regresso.
Chegou a conseguir estudar?
Fui até à quarta classe. Na altura, era muito difícil prolongar com os estudos. Os nossos pais não ganhavam quase nada. Nada era fácil.
O que fez ao terminar a quarta classe?
Não houve quase nada que eu pudesse fazer, porque a vida continuava difícil. Éramos uma família pobre sem as mínimas condições de sobrevivência. Só aos 18 anos o meu pai
arranjou-me um emprego no Hotel Polana.