Romário. O deputado feroz com medo de cão, avião e espinha de peixe


Há coisa de 47 anos, num sábado à noite, Deus desce à Terra, encosta ali na favela carioca do Jacarezinho, estica o dedo para um recém-nascido e diz: “Esse é o cara!” Pelo menos esta é a versão de Romário do seu primeiro dia de vida. Dá para acreditar? Antes de dizer qualquer coisa, faça…


Há coisa de 47 anos, num sábado à noite, Deus desce à Terra, encosta ali na favela carioca do Jacarezinho, estica o dedo para um recém-nascido e diz: “Esse é o cara!” Pelo menos esta é a versão de Romário do seu primeiro dia de vida. Dá para acreditar? Antes de dizer qualquer coisa, faça hat-trick mental: pare, pense e responda.

Nós fazemos isso pelo leitor. Romário só mede 1,65m e nunca na vida poderia ser um avançado de área, mas é! E até marca um golo de cabeça àqueles gigantes e cabeçudos suecos nas meias-finais do Mundial-94. Romário fecha discotecas com uma regularidade impressionante e nunca poderia ser o “abono de família” de uma equipa de classe alta, mas é! E até é o melhor da selecção brasileira nas gloriosas campanhas da Copa América-89 (fim a quatro décadas de seca) e do Mundial-94 (após 24 anos de espera). Romário é tão letal com a boca como com o pé e nunca podia ser sucedido como porta-voz, mas é! E até fala no Senado brasileiro como activista das crianças com síndrome de Down, doença de Ivy, sua filha mais nova. Romário passa muito mais tempo sem bola que com ela e nunca poderia ser um goleador histórico, mas é! E fecha a carreira com 1002 golos.

Romário é tudo isto e muito mais. É um espectáculo à parte. Tem mais títulos que o rei de Espanha e não os divide com ninguém: três vezes melhor marcador do campeonato brasileiro (sempre pelo Vasco da Gama, em 2000, 2001 e 2005), mais três na Holanda (todas pelo PSV, e seguidas, entre 1989 e 1991) e outra em Espanha (Barcelona-94) são as conquistas mais especiais. Ao todo, são 26 troféus individuais na corrida ao golo. Noutro patamar, Romário foi eleito oito vezes o melhor jogador, seja do Mundial (EUA-94), seja do mundo (FIFA-94), das Américas (El País-2000) ou do Brasil (Placar-2000).

Lançado em Agosto de 1985 no Vasco da Gama, então treinado por António Lopes (que passaria pelo Belenenses, sem sucesso, entre Novembro de 1990 e Janeiro de 1991), Romário diverte-se naqueles 22 anos e meio de futebol sénior e também diverte milhares (cuidado, não leia mulheres) em todo o planeta. Afinal o Baixinho, como é conhecido pela sua estatura, actua em nove clubes de sete países e divide balneário com génios do calibre de Roberto Dinamite, Michael Laudrup, Ronald Koeman, Hristo Stoitchkov, Bebeto, Ronaldo, Edmundo e Ronaldinho Gaúcho. E dificulta a vida aos treinadores mais reputados, como Johan Cruijff, Bobby Robson, Jorge Valdano e Carlos Alberto Parreira. Enfim, toda uma vida desportiva bem vivida, totalmente concentrada em futebol e… mulheres (opa, não se esqueça do prefixo milhares).

“Quando era pequeno, muito mais do que agora”, graceja Romário, “o meu pai [Edevair de Souza Faria] deu-me um conselho que ainda perdura: ‘Não roubes, não fumes, não te drogues, não bebas…’ e outra coisa que agora não posso dizer. Passei a focar a minha vida no futebol e quando jogava um clássico passava o tempo a recordar e a dizer para mim mesmo: ‘Se corri desalmadamente nos campos pelados e sem condições na Vila da Penha, nos subúrbios do Rio de Janeiro, onde fui morar a partir dos três anos, posso jogar onde eu quiser.’ Aquelas partidas entre Estrelinha, a minha equipa, fundada pelo meu pai, e o Brasileira é que eram fogo!” Quanto à outra parte, a do “agora não posso dizer”, Romário é taxativo. “As pessoas ligam noite a cigarros, drogas e álcool. Mas a noite foi sempre minha amiga. Quando saio estou contente no dia seguinte e até marco golos. E tem mais: à noite você só vê o que quer. De dia, é obrigado a ver tudo. Eu só entro nas discotecas para cumprimentar amigos e ver mulherada!” Não acredita? Veja lá…

Vamos por partes. E por números. Que Romário é amigo deles. Afinal é ele que colecciona os 1002 golos da carreira. A acompanhá-los, as suas melhores frases.

Vasco da Gama (Brasil) “A corte [o clube] está contente. Já havia um príncipe [Romário] e um rei [Eurico Miranda, presidente]. Agora juntou-se o bobo [Edmundo].”

PSV Eindhoven (Holanda) “Após a minha primeira noitada, Bobby Robson chamou-me ao gabinete e disse-me que não podia sair mais nem comportar-me daquela forma, blá, blá, blá. Ok, estive quieto por duas semanas. Depois? Voltei a sair. Mas só até às três da manhã.”

Barcelona (Espanha) “Já sei, já sei, já sei que me vão perguntar se cheguei atrasado ao treino das 10h30. Sim, cheguei. E também já sei que vão dizer que tenho de pagar mil escudos por cada 10 minutos de atrasado. Mas sabem o que vos digo? Nem quero saber! Eu vou ganhar a Copa do Mundo-94. Com o dinheiro dos prémios pago as multas todas. Já prometi isso ao Cruijff.”

Flamengo (Brasil) “Vocês [jornalistas] colocam muita besteira na minha boca, mas eu até sou um cara engraçado. Quando abandonar o futebol, vou arranjar um trabalho e o que mais queria era ter um programa de televisão só para dar porrada em vocês.”
Valencia (Espanha) “Pelé não é Rei, é Deus. Inigualável. Mas Deus só abençoou os pés desse cidadão, e esqueceu-se do resto, principalmente da boca, porque quando ele fala só sai besteira. Ou melhor, só merda. Pelé calado é um poeta.”

Fluminense (Brasil) “O cara nem entrou no ônibus [autocarro] e já quer sentar à janela [sobre o desconhecido treinador Alexandre Gama, que deixou Romário no banco de suplentes logo no seu primeiro jogo].”

Al Saad (Arábia Saudita) “Sou uma pessoa normal, mas tenho alguns medos, como qualquer um. Dos cães, porque fui mordido por três e levei 40 pontos na barriga quando era pequeno. Tenho medo de avião, apesar de já ter voado muito. E de apanhar uma espinha no peixe.”

Miami FC (EUA) “Aviso já que não vou parar. Enquanto os outros [defesas] continuarem fracos de mais, não penduro as chuteiras. Quem mais sabe sobre a minha carreira é a minha mãe e se ela diz para continuar, quem sou eu para questioná-la?”

Adelaide United (Austrália) “Ninguém paga as minhas contas ou sofre as minhas dores. Portanto, se alguém não me quiser ouvir, tape os ouvidos, desligue a televisão e não compre o jornal. Porque eu digo o que penso e vou continuar assim.”

Pois é, Romário é deputado federal pelo PSB (Partido Socialista Brasileiro), vive em Brasília e não está nem aí para a presidente Dilma Rousseff. De vez em quando, castiga-a com as suas palavras. Como no dia da abertura da Taça das Confederações, entre Brasil e Japão. “Estamos longe do perfil ideal desenhado pelos discursos público de Dilma. Ela deve estar envergonhada ao ver essas barbaridades”, numa alusão aos buracos, pregos e blocos de cimentos ainda à vista à volta do Estádio Mané Garrincha, em Brasília. Daria uma bela entrevista, tentamos por todos os caminhos, do Rio a Brasília, sem efeito. Não temos espaço na agenda de Romário. Pelo menos agora. Mas isso não nos impede de comprar a sua biografia, escrita por Marcus Vinicius Rezende de Moraes, e seleccionar as cinco melhores histórias.

Maurício, amigo e preparador físico “Num jogo do Vasco no Maracanã, cheguei à bancada e vi que estavam ali, quase juntas, as três namoradas dele naquela época. Pedi que o avisassem e ele passou-me este recado: ‘Vou marcar um golo e depois peço para sair aos 10 minutos da segunda parte.’ Foi o que aconteceu. Fez 1-0 na primeira parte, voltou depois do intervalo e foi substituído, deixando as três garotas no estádio. Depois contou-me que nem tomou banho.”

Wilson Mussauer, amigo “Romário tinha regalias no Flamengo. Uma delas era tirar um cochilo na maca antes do aquecimento. Em muitas ocasiões chegava mesmo a dormir. Quando assim era, eu chegava ao pé dele e falava: ‘Qual é, baixola, faltam 10 minutos para começar o jogo’. Ele levantava-se, molhava o rosto e ainda me dizia ‘Bacana, cavalo tem barriga, corre para car**** e não precisa alongar’.

Renato Gaúcho, amigo “Apostamos uma mulher dentro do campo, durante um Fla-Flu, no Maracanã, pelo Campeonato Carioca de 1995. Quem perdesse tinha que botar uma bela mulher na mão do outro, com tudo pago. Vencemos por4-3 e o Baixinho teve que aturar-me.”

Mauricinho, ex-companheiro “O Romário foi cortado do Mundial de Juniores-85, porque fez chichi da janela do hotel em Copacabana, com o objectivo de acertar nas pessoas lá em baixo, na rua. O Gilson Nunes [treinador] não gostou.”

Filé, fisioterapeuta “Na Holanda, ele chamou-me para uma reunião com os médicos do PSV com a presença de um tradutor. Os médicos holandeses foram contra o meu tratamento. O Romário disse ao tradutor: ‘Manda esses caras tomarem no cu, manda se fod**** e fala que esse cara aqui vai ficar comigo.’ O tradutor ficou assustado: ‘Pô, Romário. Como eu vou mandar os caras tomar no cu?’ Romário, já irritado, ordenou: “Porra, eu tô pagando você. Manda tomarem no cu.’ Foi constrangedor, mas eles aceitaram. O PSV até me pagava salário.”