De professor a padrinho, de padrinho a “chefe da Helpo no meio do mato”, em Moçambique.


Passados mais de 6 anos desde a minha primeira visita a Moçambique, continuo a deixar-me deslumbrar pelas pequenas maravilhas que vou vendo todos os dias. O céu que não acaba, as nuvens que têm outra leveza e têm outro peso, os sorrisos, as danças na beira da estrada, sem música e sem espectador, os olhares…


Passados mais de 6 anos desde a minha primeira visita a Moçambique, continuo a deixar-me deslumbrar pelas pequenas maravilhas que vou vendo todos os dias. O céu que não acaba, as nuvens que têm outra leveza e têm outro peso, os sorrisos, as danças na beira da estrada, sem música e sem espectador, os olhares furtivos de agradecimento e a alegria contagiante.

Em 2006, estava a trabalhar em Portugal como professor e a visita, apesar de curta, deixou-me marcas: recordo-me de ter pensado “nunca mais vou reclamar das más condições de trabalho!” Na realidade tudo é relativo. Como posso queixar-me de ter uma goteira dentro da sala de aula quando ainda há meninos a ter aulas debaixo da árvore? Como posso queixar-me de cadeiras desconfortáveis, quando outros se sentam no chão?

Também me recordo que a fraca qualificação dos professores pareceu-me ser um entrave grave ao desenvolvimento dos alunos, a par das fracas condições das escolas.
Enquanto há pessoas que passam a vida a perseguir sonhos, no meu caso foi o sonho que me perseguiu, e o fascínio que me invadiu ao conhecer Moçambique e o trabalho no terreno , chamou-me quando os planos eram outros. Incapaz de dizer que não a um sonho que estava guardado atrás de um conforto oferecido pelo emprego estável, a decisão tomada de tirar uma Licença Sem Vencimento para tirar um mestrado em Educação no frio da Finlândia foi trocada pelo calor do Índico, e desde Agosto de 2010 que estou de corpo, alma e coração na Helpo em Moçambique, depois de ter vestido a pele de padrinho, voluntário e membro da Direcção.

Com o passar do tempo começa-se a relativizar as coisas, fruto de uma aculturação e de um hábito que se vai entranhando e é curioso que, com as visitas que vamos recebendo, seja mais fácil estabelecer pontos de comparação entre o que estava e os pequenos passos que foram dados.
Em 2007, na visita diagnóstico ao norte de Moçambique, enquanto membro de Direcção da Helpo, estive pela primeira no Infantário Provincial de Nampula, levado pelos técnicos da Direcção Provincial da Mulher e Acção e Social. Não tirei qualquer fotografia ao espaço nem às crianças que se encontravam no local. Quando regressei em 2010 pude constatar as diferenças no espaço físico, as paredes pintadas, as estantes recheadas, a cozinha de tijolo e o logradouro mais bem cuidado. Também reparei nas diferenças da alma do Infantário pois as crianças tinham mais sorrisos, estavam menos acanhadas, gostavam de receber as visitas. Perguntei-me porque seria que não tirei fotos da minha primeira visita e creio que a resposta, pesada, me deixou feliz por comparação: em 2007 não valia a pena tirar fotos ao Infantário, em 2010 já era terreno onde a alegria reinava e a camera capturava testemunhos de esperança. Em 2013, a Directora do Infantário que se encontra com as paredes repletas de fotos das diversas actividades em que as crianças participaram recentemente, a televisão e o video com desenhos animados, a sala de estudo e biblioteca bem equipada, um mostruário de peças de roupa feitas pelos alunos, fruto de uma acção de formação financiada pela Helpo, a montra dos colares que os meninos fazem e vendem, clama por uma professor de música que venha ensinar as crianças a tocar os instrumentos musicais recebidos por donativo. Os meninos recebem as visitas com demonstrações de Capoeira e de Acrobática e não é de espantar as histórias de crianças que já fugiram de casa para tentar vir viver no Infantário.

Quando recebemos pessoas para conhecer os projectos do terreno, tentamos sempre que as pessoas relativizem as coisas, para que o choque não seja grande. Apesar de conhecer bem o trabalho da Helpo pela revista Mundo h, relatórios, planos anuais, testemunhos pessoais, o Duarte Marques deixou-se levar pela novidade e foi amplamente conquistado. Em quase todas as visitas que acompanhei, consegui traçar pontos comuns: as pessoas têm expectativas, normalmente as expectivas não são correspondidas, no entanto acabam por sair satisfeitos com aquilo que testemunham. A visita do Duarte Marques foi uma autêntica Maratona, duas províncias, várias escolas e escolinhas, muitas bibliotecas, muitos e muitos quilómetros. Uma amiga minha costumava usar frequentemente uma frase que o seu pai dizia: “o papel tudo permite”. Neste caso pode dizer-se o oposto! Por vezes a frieza dos relatórios e dos números não consegue transmitir o real efeito das coisas. A construção de 3 salas de aula pode ser traduzida em Euros, em Meticais, em número de beneficiários, mas só se consegue perceber o impacto real da construção no local. E mesmo os números parecem ser incapazes de quantificar esta realidade quase paralela, aos olhos de quem não está habituado a ver meninos a ter aulas no chão, sentados em pedra, à sombra do cajueiro. A realidade do Norte do país é tão pesada, que em Maputo, de visita à escola 12 de Outubro – Ulene, para oferecer equipamentos da Selecção Nacioanal às equipas masculinas e femininas da escola, os professores mostraram espanto ao ver fotos da realidade de Cabo Delgado, tão distante em quilómetros como em factos. Uma das coisas que mais me orgulha no trabalho desenvolvido pela Helpo, é ouvir da voz dos padrinhos aquilo que sentem quando visitam os projectos realizados. Este Padrinho especial, não só por fazer parte da grande família Helpo (obviamente todos os padrinhos são pessoas especiais!), mas por fazer parte da Direcção, ao transmitir aquilo que testemunhou, fá-lo de forma contagiante, devido ao facto de ter partido do conhecimento no papel, onde o relativo e o absoluto se misturam, para uma realidade que não deixa margem para dúvidas, onde o impacto das coisas pode ser medido a olho nu.

 

Da mesma maneira que em semana e meia o Duarte Marques, se sente mudado por aquilo que viu, também eu continuo a sentir as mudanças ténues, apesar de ser invadido por pequenas maravilhas todos os dias. África é o continente das crianças e é o continente onde a verdade absoluta não existe, tudo é relativo. Em conversa com um amigo francês que trabalhou um pouco por todo o continente, falava-lhe das estrada em péssimas condições no norte de Cabo Delgado, entre Macomia e Mocimboa da Praia, cujos terríveis 100 kms de buracos, demoravam mais de 3 horas a fazer, ele respondeu-me que, uma vez fez uma viagem na República Democrática do Congo, em que demorou 17 dias a fazer 317km!!
Apesar de ainda haver um longo caminho a percorrer, a esperança continua a sobrepor-se às dificuldades e para quem tem essa possibilidade, esta realidade tem que ser visitada para ser compreendida. Deixo o convite a todos os padrinhos e amigos da Helpo para visitar os projectos no terreno com a certeza de uma coisa: África não pode ser vista, apenas pode ser vivida!

* Membro da direcção da Helpo e deputado da Assembleia da República