Ricardo Sá Fernandes. “Se o Face Oculta for anulado, o responsável é Noronha Nascimento”


Ricardo Sá Fernandes foi condenado, este ano, pelo Tribunal da Relação por gravação ilícita no processo Bragaparques. Este episódio é visto pelo advogado como uma vergonha para a justiça portuguesa. Sá Fernandes – que sempre fez questão de frisar a sua luta contra a corrupção – revela que há juízes complacentes com este fenómeno. Em…


Ricardo Sá Fernandes foi condenado, este ano, pelo Tribunal da Relação por gravação ilícita no processo Bragaparques. Este episódio é visto pelo advogado como uma vergonha para a justiça portuguesa. Sá Fernandes – que sempre fez questão de frisar a sua luta contra a corrupção – revela que há juízes complacentes com este fenómeno. Em entrevista ao i critica ainda as medidas propostas pela ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, fala do caso Face Oculta e revela o porquê de ter assumido que é maçon.

A sua condenação por gravação ilícita é apenas um episódio do processo Braga parques. É, no entanto, suficiente para considerar que foi um batalha perdida?

Não, nós não devemos perder o foco. Esta minha condenação é, como disse, apenas um detalhe do caso Bragaparques. Em Portugal são muito poucos os casos de grande corrupção que chegam ao fim. Há alguns pequenos, sobre presentes para os militares da GNR ou sobre alguns autarcas de pequenos municípios que desviaram quantias pequenas, mas corrupção a sério nós não temos nos tribunais.

Mas há com certeza mais casos de grande corrupção que chegaram a tribunal…

Tivemos há uns anos o caso de Carlos Melancia, o ex-governador de Macau acusado de corrupção passiva. Mas foi absolvido, bem como os corruptores que aparentemente existiam. O processo acabou com uma condenação e depois uma anulação do julgamento. Entretanto morreu na praia sem que se apurasse a verdade dos factos. Outro caso de grande corrupção que não chegou ao fim foi o de Isaltino Morais. As pessoas confundem muitas coisas. O Isaltino Morais acabou por ser condenado – ainda que não se saiba se vai ou não cumprir a pena – mas apenas por fraude fiscal e branqueamento de capitais. Ou seja, a principal acusação contra ele não foi para a frente porque o julgamento foi anulado e entretanto prescreveu.

Sente então que no caso Bragaparques se fez justiça, apesar da sua condenação?

Sim. O panorama do julgamento da grande corrupção em Portugal é quase inexistente. E eu, nesta história da Bragaparques, tenho um orgulho muito grande, porque pela primeira vez um eleito em Portugal denunciou um caso de corrupção de que era objecto e apesar de tudo, contra ventos e marés, esse caso chegou ao fim com a condenação do corruptor, Domingos Névoa.

Mas essa condenação só chegou com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça…

Sim, foi um processo muito sinuoso em que Domingos Névoa começou por ser condenado a uma multa. Depois foi absolvido e só quando chegou ao Supremo Tribunal de Justiça é que, num acórdão exemplar, é condenado e as coisas são chamadas pelos nomes. É dito claramente que o que está em causa é um caso de corrupção, com dolo intensíssimo, com comportamento inqualificável e ainda que todos os passos dados para detectar o corruptor foram bem dados.

Qual a importância da gravação ilícita por que foi condenado neste caso?

Esta gravação que serviu para me condenar não foi a que provou a corrupção. Esta conversa por que fui condenado foi a gravação do primeiro encontro que serviu apenas para provar que foi ele a procurar-me e não eu a ele. Isto não serviria para condenar ninguém em parte nenhuma do mundo. Aliás, mesmo em Portugal eu fui absolvido na primeira instância e tive como testemunhas várias pessoas do Ministério Público, como a dra. Maria José Morgado, a dra Cândida Almeida, o dr. Jorge Teixeira, mas depois fui condenado na Relação.

Houve pressões?

Bom, a corrupção mete muito dinheiro – no Bragaparques estavam em causa dezenas de milhões de euros – há muito dinheiro para pagar a pareceres, advogados e a agências de comunicação. Há muito dinheiro para tentar abater quem combate isto e eu estou preparado para tal. Por isso vou denunciar quem se pôs ao lado do corruptor contra quem denunciou a corrupção.

Domingos Névoa não está a cumprir pena. Isso diminui o seu sentimento de dever cumprido?

É verdade. Não se sabe sequer se vai cumprir a pena ou não, mas isso para mim não é o mais importante. O mais importante é que hoje os jornalistas podem referir-se ao senhor Domingos Névoa como o corruptor, porque há uma sentença do Supremo onde é referido que ali houve corrupção. E isso é para mim o mais importante.

A única coisa negativa neste caso foi então a sua condenação?

Não. Ficaram muitas mazelas e eu saio cheio de cicatrizes, mas são cicatrizes que eu ostento com muito orgulho. Porque foram as cicatrizes necessárias para levar os tribunais a concluírem que estávamos perante um caso de corrupção.

O combate à corrupção é muito difícil em qualquer parte do mundo e eu sinto que tenho de ter uma posição de humildade, porque sei que muitos pagaram com a vida o combate à corrupção. E quando eu penso nessas vidas destruídas eu acho que as minhas cicatrizes são pequenas mazelas.

O combate à corrupção não tem sido, na sua opinião, uma prioridade?

Em Portugal não há vontade a sério de combater a corrupção. Há vozes isoladas, há acções isoladas que pretendem pôr fim ao problema. Há equipas determinadas no Ministério Público, como é o caso do da dra. Maria José Morgado ou o do dr. Euclides, em Coimbra. Mas não há no MP, por exemplo, uma actuação concertada de combate à corrupção. O próprio PGR desvaloriza imenso o tema e a classe política fala muito de corrupção mas nunca se atreve a relatar uma situação em concreto.

E considera isso falta de coragem ou aceitação social?

É um pouco das duas coisas. A corrupção é uma grande chaga da nação com consequências terríveis do ponto de vista da consciência social das pessoas mas também do ponto de vista do nosso quadro económico. Portugal não sairá do nível de dificuldade em relação ao seu desenvolvimento económico se não eliminar este problema.

Nos tribunais, há juízes que tomam decisões que os portugueses não entendem. Por que acha que isso acontece?

Porque da parte dos juízes há também uma grande complacência. Eles são filhos da sociedade e portanto há juízes que têm uma visão adaptada a este fenómeno da corrupção, há outros que são complacentes. Há juízes que desvalorizam a corrupção. A sentença da relação que absolve o Névoa é incrível, tal como a que me condena pela gravação ilícita.

A sua condenação foi então por complacência?

Aí já nem sequer tem a ver com a complacência com a corrupção, é algo mais perverso. É o descontrolo absoluto em que actuam alguns magistrados. A decisão da Relação é uma decisão completamente arbitrária e que me visa pessoalmente. Eu sou a voz incómoda que foi preciso marcar. Enganam-se, porque quem ficará marcado por este detalhe do caso Bragaparques serão eles e não eu. Serão eles, porque eu não transporto comigo nenhuma infâmia pelo facto de ter sido condenado por aquilo que fiz, mas eles transportarão para o resto da vida a infâmia de me terem condenado nos termos arbitrários em que o fizeram. Estes senhores juízes podem é sentir vergonha.

Se são tentativas de humilhação, porque acha que nenhum advogado ou juiz vêm a público criticar esse tipo de decisões?

Há muitas notas de imprensa, muitos jornalistas que escrevem e dizem: “Que vergonha”. Agora juízes, advogados, professores de Direito não. Também não dizem o contrário, ou seja, a justiça em Portugal não é escrutinada. E não o é, porque anda sempre tudo com medo. Os advogados e os professores de Direito não comentam as sentenças, porque poderão ficar mal e amanhã serem prejudicados nos casos dos seus clientes ou em matérias relativas às quais eles fazem pareceres. Os juízes não podem por natureza, e aí ainda percebo. O PGR tinha a obrigação de se pronunciar.

Como tem visto o trabalho da ministra da Justiça no combate à corrupção?

Não vi nenhuma actuação concreta, nem nenhum apoio a quem a combate. Aliás, a minha história é um sinal para dizer às pessoas: não combatam a corrupção, senão serão trucidadas.

Sobre o caso Face Oculta, há a percepção de que o sistema não quis investigar José Sócrates. Isso tem fundamento?

Acho que o comportamento do senhor presidente do Supremo Tribunal de Justiça e do senhor procurador-geral da República é no mínimo lamentável. Perante a denúncia que existiu dos magistrados de Aveiro, que o fizeram por não ter competência territorial nessa matéria, tinha de ser aberto um processo-crime e, perante aquele auto, aberto um inquérito que podia levar ao arquivamento. Mas em qualquer dos casos deveria ficar à disposição de quem tivesse legitimidade para o consultar e analisar. Eu não sei se o senhor engenheiro José Sócrates cometeu o crime porque foi indiciado. Agora, que há uma participação do Ministério Público, há. E por isso deveria ter sido aberto um inquérito tal como acontece com qualquer outro cidadão.

A justiça sai manchada?

Ao não ter acontecido isso e ao terem sido atropeladas, na minha opinião, muitas regras legais que depois redundaram na destruição daquele material, fez-se muito mal à justiça em Portugal. Acho que quando olhamos para os topos da magistratura e vemos este comportamento do senhor Noronha do Nascimento e do senhor Pinto Monteiro, sem prejuízo do respeito que estas pessoas merecem – e relativamente ao senhor Pinto Monteiro tenho até muita simpatia pessoal –, não podemos acreditar no sistema. Eu sinto-me desconfortável num país onde apesar de haver magistrados que acham que existe matéria numas escutas elas são destruídas.

Foi negativa a actuação de Pinto Monteiro e de Noronha do Nascimento?

Acho que o dr. Pinto Monteiro e o dr. Noronha do Nascimento contribuíram para o desprestígio da justiça portuguesa. São pessoas distintas com carreiras notáveis mas que analisaram mal o caso e escusavam de ter esta nódoa negra no final das suas carreiras. O exemplo que eles deram ao país é o exemplo contrário àquele que deve ser dado pelos mais altos magistrados do país.

No início do ano disse que tinha de haver consequências jurídicas pela destruição destas escutas contra a vontade de um dos arguidos. De que falava?

E coloca a hipótese de este processo vir a ser anulado?

Sim. E se o Face Oculta for anulado, o responsável é o dr. Noronha Nascimento. Porque teve aquele afã em defender o primeiro-ministro, apesar de ser avisado pelo juiz de Aveiro, o dr. Marques Vidal das consequências… Portanto se isso acontecer, e é possível que aconteça, o responsável é o dr. Noronha Nascimento, que aliás foi alertado pela defesa do dr. Paulo Penedos, pelo senhor procurador-geral da República e pelo juiz de Aveiro para as consequências

Será mais um motivo para o descrédito dos portugueses na justiça?

Acho que sim. Em Portugal há uma perversão: as questões processuais sobrelevam tudo o mais. É um absurdo. Algo que não existe em mais nenhum país civilizado, à excepção talvez de Espanha ou de Itália. Em outros países, os processos terminam com o apuramento ou com o não apuramento das coisas, não com este atropelo… Nós vivemos submetidos a esta cultura do formalismo que é uma cultura de preguiça.

Formalismo?

Sim, quem recebe um megaprocesso, se conseguir matá-lo logo na primeira página, fá-lo. Portugal é, do ponto de vista intelectual, preguiçoso. O formalismo tem muito peso, não porque as pessoas não queiram saber a verdade, mas porque isso lhes dá trabalho. E como dá trabalho, há despachos e decisões que eu vejo e penso: o trabalho que este tipo teve para não ter trabalho. As voltas que se dão para não ter que tomar decisões…

Acha que algo pode mudar na justiça nos próximos tempos?

A senhora ministra da Justiça é uma pessoa muito voluntariosa, com muitas qualidades humanas e intelectuais. Tenho, aliás, por ela muita consideração, mas acho que a reforma da justiça está a ir pelo caminho errado, começando logo pelo memorando da troika. E as medidas avulsas que aparecem para além do memorando da troika também demonstram uma falta de compreensão dos problemas da justiça em Portugal. Eleger aquela meia dúzia de alterações é completamente descosido e sem qualquer lógica. Provavelmente a ministra está um pouco prisioneira do memorando, mas não deixa de ser curioso que ainda nenhuma das metas tenha sido cumprida. Nenhuma. Piquei-as uma a uma, noutro dia.

Porque acha que o caminho que está a ser seguido está errado?

Digamos que a ministra tem um grande projecto que é a reforma do mapa judiciário. O governo anterior também tinha um projecto para alteração do mapa, que assentava nas NUT’s, o do actual governo tem por base os distritos. O anterior não era brilhante, este é péssimo. Como é que é possível, num momento em que que se quer deixar de considerar os distritos, se queira organizar um mapa judiciário tendo em conta os distritos. Não é possível. O das NUT’s tinha alguma lógica, porque é com base nesta nomenclatura que se recebem os apoios comunitários. Além disso não havia a extinção de tribunais. Ainda assim eu era contra, não por ser pior que o actual, mas porque não nos podemos dar ao luxo de andar sempre a mudar de sistema.

Não vê então virtudes nesta mudança?

Tenho imensa pena de o dizer, até porque gosto de ter sempre uma posição construtiva, mas o caminho da senhora ministra é o caminho errado. O caminho é para Norte e ela vai para Sul, por isso vai ser uma desgraça. Este é o caminho da desgraça. Devo dizer que o caminho do anterior governo também não era bom, porque não era melhor que o actual e ia fazer-nos perder tempo. O edifício da justiça que temos é um edifício que tem lógica. Agora vamos é pôr isto a funcionar e dar operacionalidade ao que temos. Mudar isto? Passar o resto da legislatura a tratar deste assunto?

E o que pensa das reformas do processo penal?

Há uma coisa que é muito positiva, a suspensão da prescrição a partir da sentença da primeira instância. É uma medida cirúrgica que se justificava e pode haver mais alguma que se justifique. Mas no geral são medidas inúteis para o sistema. O das prisões em flagrante delito vai dar confusão e aquela coisa, que não sei se ficou ou não, de juízes poderem agravar as medidas propostas pelo MP é uma coisa marginal que só serve para pôr plumas nos chapéus dos juízes.

O que mudaria no processo penal?

O processo penal precisa de uma grande reforma – ao contrário do civil – no inquérito, no julgamento e nos recursos. Tem de ser mexido de alto abaixo. Por exemplo, não se sabe fazer julgamentos em Portugal. Há casos em que os juízes estão a fazer o julgamento a ler o inquérito. É um exercício de hipocrisia. Um português que queira saber como se faz um julgamento aprende melhor com um filme americano. Porque se for a um tribunal português ficará horrorizado. Um recurso sobre matéria de facto é também uma fraude, na grande maioria das vezes não existe. No Supremo Tribunal de Justiça construíram-se tantas regras para limitar o acesso que hoje o STJ é quase um castelo onde poucas coisas chegam.

E no código civil?

Nesse penso que não valia sequer a pena estar a mexer. O problema do processo civil é apenas um: solicitadores de execução e administradores de insolvência. Temos poucos, pouquíssimos, administradores de insolvência e insuficientes solicitadores de execução. Por isso não vale a pena fazer leis, é preciso é fazer acções de formação para termos mais profissionais destes.

Assumiu há uns meses ser maçon. Sentiu necessidade de o fazer? Porquê?

Senti, sou maçon há muito anos, fui maçon muito novo e quando entrei era uma instituição de velhos e nunca fiz muita militância, mas sempre defendi os princípios, que são princípios sãos que qualquer pessoa considera correctos. Mas tenho consciência de que a Maçonaria pelo seu secretismo pode favorecer mecanismos perversos, como a corrupção, o tráfico de influências, o nepotismo. E no momento em que explodiu o caso da Ongoing e da loja maçónica eu senti necessidade de dizer: alto lá, isto não é tudo igual.

Hoje esse secretismo faz sentido?

Eu acho que hoje não há razão para que tudo continue assim e entendo que quem for para um cargo público deve revelar que é maçon. Deve ser a pessoa a sentir essa necessidade, quase como que um dever maçónico.

Não acha que as decisões da justiça maçónica deveriam ser públicas?

Só nas situações em que o que está em causa diga respeito a algo para além da maçonaria. Aquelas que têm a ver apenas com questões internas acho que não devem ser públicas.

Mudando de assunto, com a actual crise económica que futuro terá Portugal?

Aí entramos num campo de convicções. Este governo entrou numa lógica – que é a lógica da troika – melhorada e exacerbada com o pressuposto de que se conseguirmos manter uma austeridade férrea poderemos voltar a respeitar os parâmetros que os nossos credores nos pedem e que mais tarde poderemos ser recompensados. Sobre isto, há os que acham que o governo tem razão e os que acham que não tem. Eu estarei mais do lado dos últimos, mas respeito a opção. Tem consistência e ao contrário de outras apostas, cujos resultados demoram muito tempo a chegar, o resultado desta aposta vamos vê-lo já para o próximo ano. Eu coloco-me do outro lado, dos que acham que a aposta é errada, porque ela própria inviabiliza o que a prazo promete, que é o crescimento económico. Acho que o Memorando da troika é um erro em que praticamente toda a gente esteve mal. Não concordo de todo com esta política de aumento dos impostos e criação de impostos extraordinários, porque a retirada do 13º mês é um imposto. O comércio paralelo vai aumentar

Há mais medidas que, na sua opinião, vão ser prejudiciais para país?

Sim. A política de privatizações, em que para ganharmos umas coroas vamos contribuir para que centros de decisão importantes e centros de atracção saiam do país. O que se fez com a Cimpor é inadmissível e o que se vai fazer com a TAP é criminoso. Se há empresas cuja privatização não faz que os equipamentos saiam de cá, como é o caso da EDP, há outras que não são bem assim. Nada impede a deslocalização de unidades da Cimpor e o caso da TAP então é ainda mais perigoso.

Porquê?

No futuro, e caso a TAP seja privatizada, o único grande aeroporto da península será o de Madrid, nem vale a pena fazerem o outro que já estava projectado. Tudo porque se está pensar no dinheiro imediato e não nas consequências futuras. E não é assim que se deve pensar um país. Um país tem de ser pensado a longo prazo.