Patrícia Vasconcelos. “O meu sonho é descobrir uma Marilyn”


Patrícia, nome roubado à personagem de Jean Seberg em “O Acossado” de Goddard. Patrícia, mãe de Laura, mais um assalto sem ferir majestades ao filme de Otto Preminger. Patrícia Vasconcelos, mais ela em nome e energias próprias, que Patrícia a filha de António-Pedro. O cinema percorre a vida da pioneira dos castings, que nunca quis…


Patrícia, nome roubado à personagem de Jean Seberg em “O Acossado” de Goddard. Patrícia, mãe de Laura, mais um assalto sem ferir majestades ao filme de Otto Preminger. Patrícia Vasconcelos, mais ela em nome e energias próprias, que Patrícia a filha de António-Pedro. O cinema percorre a vida da pioneira dos castings, que nunca quis ser actriz. Sonhou ser bailarina, foi hospedeira, e estreou-se sem medos a cantar. A um ano de regressar aos discos, visitámo-la na Lx Factory, no décimo aniversário da sua escola de actores, a ACT, na semana em que acabou com a TV Cabo em casa a bem dos serões em família ao sabor dos filmes.

São dez horas e diz que já teve uma manhã cheia.

A minha mãe diz que eu já nasci a correr. É muito o meu feitio. Quer dizer, eu costumo dizer, embora as pessoas não acreditem, que sou a maior preguiçosa do mundo. Sou tão preguiçosa que quero despachar tudo para depois poder não fazer nada. Quando estou de férias ninguém me levanta o rabo da areia. Mas tenho muita energia. Levanto-me às sete para levar a minha filha à escola e depois desencadeiam-se logo uma série de coisas.

Costuma ser sempre assim?

Há uns dias em que desapareço. Não é não atender a telefones e deixar coisas penduradas, porque sou muito responsável, para mal dos meus pecados. Mas tiro normalmente uma tarde ou um dia inteiro por semana. Durante muitos anos culpabilizei-me por esta faceta, mas depois pensei que era importante estar sozinha a reflectir, a criar. Ontem, por exemplo, fui a uma reunião onde o meu pai também tinha que estar presente. Era hora de almoço, resolvemos ir às pizas, depois como ainda tínhamos tempo fomos passear. Aquilo soube-me que nem ginjas.

Passa muito tempo com o seu pai?

Passo bastante. Nós somos muito osmósicos. Falamos todos os dias ao telefone, trocamos emails, passamos férias juntos. Acho que fui um bocadinho desenraizada aos 10 anos quando saí do país. Quando voltei tive necessidade de um sentimento de família. Os meus filhos têm que passar sempre 15 dias de férias com os avós, que aliás foi uma coisa que tive. Tenho muito o sentido do clã. As férias com o meu pai, a mulher dele e o meu irmão mais novo, não podem falhar. De repente, se reparar, se nos desabituarmos de dar um beijinho já não há contacto físico com os nossos filhos.

Percebem bem o trabalho da mãe?

Percebem, coitados, também já nasceram no meio. O meu filho Thomas, que tem 20 anos, durante muitos anos rejeitou tudo o que eram artes. Ainda por cima o pai também é realizador, como o avô. Agora, obviamente está-lhe no sangue. É só artes. A Laurinha nasceu num meio onde se integra completamente.

A Laura que recebeu o nome inspirado no filme do Otto Preminger.

Sim, vem daí. Eu sou Patrícia por causa do Goddard. O Thomas já é Thomas por ele próprio [risos]. Por acaso ela ainda não viu o “Laura”. No outro dia tomei uma decisão em casa: vamos acabar com a TV Cabo. Achava que ia ser muito mal recebido, mas foi lindamente bem recebido.

Conseguiu desligar?

Acaba sexta-feira [hoje]. Cheguei à conclusão de que não vejo televisão mais do que aqueles quatro canais. Quando vejo, ainda por cima não é muito bom. Tenho montes de DVDs. Portanto, chegámos à conclusão que o que vamos fazer todas as noites é ver um filme.

Recorda-se da sua estreia como espectadora de cinema?

Lembro-me perfeitamente do primeiro filme que me marcou, com oito anos. Fui vê-lo sete vezes ao Império, porque vivia na Alameda Afonso Henriques. Era o “Hello, Dolly”, com a Barbra Streisand vestida de dourado a descer aquela escadaria. Aquilo para mim era assim uma coisa maravilhosa. Depois entrei pelos musicais adentro e fiquei fascinada.

Tanto que ganhou o gosto da música.

Apanhei completamente o gosto. É engraçado, não sou nada de planear essas coisas, mas acho que sempre lá esteve. Eu queria ser bailarina, só que nunca exprimi isso com muita convicção aos meus pais e eles nunca me encaminharam para o bailado, apesar de ter feito dança durante muitos anos. É das coisas que tenho mais saudades. A minha filha estava a contar-me que tinha feito uma aula de barra no chão e decidi que a partir de Setembro tenho que voltar à dança.

Teve alguma influência especial?

Acho que não, mas achava os musicais o máximo; e os filmes da Marilyn. Ainda ontem eu e o meu pai tivemos uma conversa sobre isso, a dizer que pouca gente a compreendeu. Continua a ser a mulher mais fascinante que já conheci. O meu sonho é descobrir uma Marilyn.

Já encontrou alguma portuguesa que possa estar a esse nível?

Não estou muito longe. Tenho duas ou três perolazinhas. Têm-me acontecido coisas interessantes ultimamente, acho que sou uma privilegiada. O “Conta-me como Foi”, para mim, foi a jóia da coroa do meu trabalho. Feito com pinças, que mostra o que deve ser o trabalho de casting. Pôr uma pessoa conhecida com uma pessoa desconhecida. É a única forma de aparecerem caras novas. Isso orgulha-me imenso. Tenho mais nomes em carteira.

Há talento, o problema é escoá-lo?

Sim, e também não posso começar a ligar para as produtoras todas a dizer para pegarem nesta ou naquela miúda. Basta se confrontarem com alguém que não as saiba dirigir para o seu talento passar despercebido. Tenho uma que ando a virar para Inglaterra e os EUA que é um diamante em bruto. Daqui a uns anos vai ver.

Trabalha muito com o mercado internacional?

Como cá a cultura parou, o meu sector parou. Tenho a sorte de estar a recolher os frutos daquilo que andei anos a semear lá fora. Já estava a ficar um bocadinho tristonha por não haver castings. Ontem de repente recebi um email de um projecto inacreditável para os EUA, uma mega série. Isto para mim são bombons. O futuro está em fazer com que estes actores maravilhosos possam fazer uma carreira internacional. Vão ficar cá a fazer o quê? Cinema não há, e quando há dificilmente abrem os castings; televisão é escasso. Na semana passada também recebi um email delicioso de um grande agente americano a dar-me os parabéns pelo meu trabalho. Relatou-me ponto por ponto o que eu tinha feito em vários castings. Não é que não me leve muito a sério, mas costumo pôr-me muito em causa. Nunca me apercebo do que na realidade já fiz.

Reconhece que já fez muito?

Claro, há 23 anos que estou cá. Se formos ver os actores que começaram num casting comigo… Tive o privilégio de os conhecer, depois o mérito é deles. Mas de facto fui eu que os descobri em primeira mão. É uma joint venture. Eu preciso deles como eles precisam de mim. É saber o que pode dar e o que não pode dar, e o que guardar.

É um investimento a longo prazo?

Sim, muito de observação, de estudar a essência da pessoa. Uma das razões porque tenho que ir ao teatro, que é a minha fonte de alimento, é porque tenho que ver os actores. Muitas vezes a peça pode não ser boa, o actor pode não estar bem naquela peça, no entanto percebes que noutro papel ele ficaria melhor. Fica registado no computador interno e um dia lembramo-nos. Faço-lhe o teste e resulta.

Costuma abordar pessoas na rua?

Adoro, quando sinto que a pessoa é muito interessante. Acontece-me muito nos restaurantes com os empregados. É um óptimo sítio para observar as pessoas. Às vezes sinto que não vou deixar o número porque estou a criar expectativas. Tomo nota da pessoa no meu livrinho, sei onde está, e quando precisar vou lá. Outras vezes deixo o meu cartão e vejo se a pessoa me procura. Todos temos a noção das nossas limitações. É como pedirem-me para descobrir uma miúda linda de morrer, talentosa, com 30 anos. Esquece. Isso não existe. Porque com 30 anos ela própria já se descobriu. Olhamos para o espelho e sabemos o que conseguimos dar.

Acontece-lhe ter interesse numa pessoa e ela não querer?

Aí não podes fazer nada. Não insisto. Sempre que faço castings a crianças os pais não entram. Tenho que sentir que a criança está a ter prazer. Aliás, faço casting às crianças e aos pais, porque a produção vai ter que lidar com eles muito tempo.

Também lhe aparecem muitas pessoas que querem ser actores por acharem que é moda?

Ui, esses tiro-lhes o tapete em dois minutos. Percebo logo. Para já, quando dizem quero ser actor, pergunto “actor de quê?” Quando me respondem “sei lá”, basta isso para dizer “next”. Ou quando me dizem que querem aparecer na televisão, também é “next”. Tu sentes logo se aquilo vem da alma ou se querem ir fazer um cursozeco porque não entraram em sociologia. Costumo dizer que sou aquela do “quando o telefone toca”. De facto, quando o telefone toca e é a Patrícia, em princípio é uma boa notícia. A outra, a do “não ficaste”, vai por SMS.

É como costuma fazer?

É. E raramente sou eu que dou as boas e más notícias. As pessoas reagem de formas muito diferentes, sobretudo em relação à rejeição. É preciso estofo. Todas as pessoas que trabalham comigo têm uma cábula sobre como se devem anunciar ou fazer o SMS. Têm que fazê-lo de uma forma que não tenha pausas, para não dar hipótese de a pessoa se carpir. Não sei se há mais pessoas que o fazem, mas sempre ouvi dizer que sou a única que telefona a avisar que a pessoa não ficou. Tenho essa delicadeza.

No site pede que lhe enviem o material, as fotos, por correio ou que entreguem em mãos. Por alguma razão especial?

Prefiro que não seja por email, por uma razão simples. Atrás da minha mesa estão os dossiers de umas 27 mil pessoas; já lhe perdi a conta. Quando estou com realizadores, imagina que procuramos um casal. Tenho que ter as fotos à minha frente para fazer o match. Houve uma altura em que tinha um painel carregado de fotografias. Era inspirador para mim. No filme do Bill August, que veio cá filmar com o Jeremy Irons, tinha que arranjar vários actores em novos. Sou a mulher dos recortes. Num dos filmes do meu pai, percebi qual era o personagem que ele queria inspirada por uma mini foto que vinha na Tv Guia.

Quando começou, em 1989, esta actividade era recebida com estranheza?

Completamente. Vi as reacções mais extraordinárias. Para já, os meus futuros clientes eram os realizadores que me tinham visto crescer. Era a miúda. Havia pessoas que nem sabiam o que queria dizer casting. Escrevia-se um guião e depois procurava-se alguém de vinte e tal anos para fazer de filha de não sei quem. Levou algum tempo até me afirmar. O primeiro filme que fiz foi um francês e correu bem. Depois o grande boom do cinema e do casting foi com os “Sinais de Fogo”, do Luís Filipe Rocha, e o “Zona J”, que deram imenso que falar. Aí sim, tem carimbo de casting. Pôs-me noutro patamar. Percebiam quanto um trabalho de casting é essencial. Mas sou uma mera colaboradora do realizador. Ele é que escolhe.

É um desafio perceber o que querem?

Isso é o grande problema. Já tive realizadores a descreverem-me personagens que foram histórias absolutamente surreais. Depois também há que pôr de parte o nosso gosto. Quando me dizem que querem uma pessoa bonita, os conceitos de beleza não são iguais. É preciso servir aquele realizador. Também acho admirável a generosidade de um actor ao trabalhar com certos realizadores, sobretudo aqueles em que conhecemos zero do seu trabalho e te entregas de mão beijada. É que o realizador pode montar uma merda de um filme do qual o actor nem se orgulha mas tem que defender e promover.

Ser actriz nunca foi uma hipótese?

Nem pensar. Estás a ver com a minha forma de ser alguém me dar uma ordem? [risos]. Não posso ser dirigida. Quer dizer, já tive montes de convites mas não é mesmo my cup of tea. Agora, cantar, canto. Como quero, onde quero. Sou uma privilegiada.

Que começa com uma surpresa no seu casamento.

Sim, ainda hoje não sei qual foi o clique que me deu para ir cantar e dar esse presente ao André. Sei que estive três meses a ensaiar, fui buscar uns músicos de topo para estar defendida. Foi um momento mágico. Uma pessoa disse-me uma coisa muito foleira mas tenho que lhe agradecer. Acabou por ser o que me deu mais força. Depois do casamento, dezenas de pessoas ficaram embasbacados, apesar de cantar sempre uma música ao piano nos meus aniversários, desde os 30. Até o meu pai, que não é nada de palmadinhas nas costas, ficou surpreso. Estava a fazer uma viagem de carro com alguns amigos, e eu disse que estava pensar ir estudar canto. O gajo que ia a conduzir diz-me: “mas achas que alguém está interessado em ouvir-te cantar?”. Não se diz, até porque não foi na brincadeira. Agora é que ele ia ver [risos].

Ainda a espicaçou mais.

Deu-me força. Sei o que é a noção do ridículo e por isso tenho uma exigência em palco em relação à minha pessoa que às vezes até é demasiado. Durante muito tempo filmei os meus espectáculos, analisava, corrigia. Já tenho quase 47 anos, já me posso permitir descontrair. Agora, o ser actriz, jamais. Tentei quando era miúda. O meu pai desafiou-me a entrar num filme dele mas ficou parado e quando voltou eu já estava gigantona. Sei que não tenho mesma queda para isso.

Qual o balanço destes 10 anos de ACT?

É um projecto interessante que não poderia existir sem a Elsa Valentim. Além de ser grande amiga é a directora pedagógica mais extraordinária. Sabíamos que o projecto ia ser a antítese do negócio. Para ser de qualidade, formando 20 alunos por ano. É impossível pagar-se a si próprio. Deveríamos ter um mecenas e não temos. É interessante fazer omeletas com poucos ovos, que é aquilo que Portugal está a fazer. Há que estar sistematicamente a inventar mas dá uma grande endurance.

Orgulha-se do “Conta-me como foi”. Em algum casting sentiu que ficou aquém ou que se enganou?

No dia em que isso me acontecer mudo de profissão. É o que não me pode acontecer. Há alguns que na altura do casting não concordo com a escolha do realizador e sei que ele se vai espalhar, mas se não me quiser ouvir, fica dito. Por outro lado, tenho casos ao contrário que são fantásticos. Quando tenho a profunda convicção de que tenho o actor certo para aquele papel sou a maior chata do mundo. Massacro até às últimas consequências.

Tem saudades do tempo que passou no estrangeiro?

Tenho muitas saudades da ex-Jugoslávia. Adorava lá voltar. O meu padrasto, o Álvaro Guerra dizia que não se devia voltar aos sítios onde fomos felizes. Quero voltar mas tenho algumas memórias, e não quero que as imagens sejam outras. No outro dia pelo Facebook recebi o contacto de uma amiga de lá com quem não falava há 30 anos. Cortei um pouco as relações em certa fase.

Uma fase em que nem sonhava com castings?

Completamente. Aos 18 anos fui trabalhar para ser independente. Só vinha a Portugal de férias ter com o meu pai e não tinha noção da dimensão do trabalho dele. Para mim era um pai igual aos outros que fazia filmes. Parece que apaguei aquelas memórias até aos 10 anos, de dormir debaixo das câmaras no meio das filmagens. Era hospedeira da Lufthansa e amava o meu trabalho. Quando decidi com o meu marido na altura vir viver para Portugal, porque o Álvaro Guerra e a minha mãe foram viver para a Índia, não quis seguir os pais para outro posto diplomático. O meu sonho era ser transferida da Lufthansa Kinshasa para Lisboa. O meu mundo desabou quando recebi a carta a dizer que não tinha sido aceite. Tive que abrir os olhos. Comecei a responder a anúncios do “DN”, fui às entrevistas mais inacreditáveis. Não queria ajuda do meu pai, mas lá fui parar a um filme dele e as coisas aconteceram.

Quando é que sentiu que já não era vista como a filha do António-Pedro Vasconcelos, mas sim a Patrícia Vasconcelos?

Agora ele é que é o pai da Patrícia. [risos]. Ou melhor, eu é que sou a mãe da Laura. É assim a vida. Ainda no outro dia alguém me apresentou como a filha do António-Pedro, mas porra, antes de ser a filha dele tenho nome. Que raio, parece que ando sempre com o meu pai atrelado!