Belanov.”Não sou nenhum Schwarzenegger mas levanto135 quilos”


Portugália ou Ispaniá? Num misto de boa vontade e espontaneidade, respondemos automaticamente Portugália. Adeus descanso, olá emoção. Estamos na última fila do voo Moscovo-Donetsk. Como? Ahhhh, pergunta muito bem sim senhor: por que é que fomos a Moscovo? Começamos por reforçar a ideia descabida de um Euro em dois países sem o Euro nem condições…


Portugália ou Ispaniá? Num misto de boa vontade e espontaneidade, respondemos automaticamente Portugália. Adeus descanso, olá emoção. Estamos na última fila do voo Moscovo-Donetsk. Como? Ahhhh, pergunta muito bem sim senhor: por que é que fomos a Moscovo? Começamos por reforçar a ideia descabida de um Euro em dois países sem o Euro nem condições estruturais.

Exemplo: Mundial-2010, África do Sul. Há voos charter todos os dias, de cidade-sede para cidade-sede a preços convidativos (200 euros já é uma estica impensável), e os adeptos deslocam-se sem problema. Dois anos depois, Polónia e Ucrânia produzem um cocktail explosivo entre falta de sensibilidade e bom senso. Não há voos directos coisa nenhuma – queremos ver o Itália-Espanha em Gdansk ao domingo, um dia depois do Portugal-Alemanha em Lviv mas isso é impossível; simplesmente não há ligação entre as duas cidades ao fim-de-semana, um requinte de malvadez. É comum sairmos do Euro, um ate já, vamos ali a Viena e já voltamos. Quem escreve Viena, diz Genebra, Munique, Istambul ou Moscovo. Ou Odessa-Viena-Moscovo, como é o nosso caso.

Fomos a Odessa aproveitar um dia de férias, batemos à porta da academia de futebol de Belanov e entrevistámo-lo. Segue-se Donetsk para ver Portugal-Espanha. Tal é impossível. Não há voos nem preços de encantar. Temos de sair do Euro (Viena). Daí apanhamos o voo para Moscovo mas não é assim tão fácil. No embarque, um revisor impede-nos de entrar no avião. “Onde está o visto para entrar em Moscovo?” Moscovo é só escala, vou para Donetsk. “Ah sim, e como é que sei que vai para Donetsk?” Está aí escrito no bilhete. “E por que é que não tem o bilhete Moscovo-Donetsk consigo?” A senhora do guichet disse que isso só se trata em Moscovo, numa zona de trânsito. “Não, não. No ticket to Donetsk, no fly to Donetsk. Wait here.” Aparece então uma rapariga para fazer o check-in de todos os passageiros. Telefona ao supervisor à nossa frente. Sou todo ouvidos. Afinal é em alemão. Sou todo sorrisos. Ela também. “És italiano?” Não, português. “Melhor ainda! Vais ao jogo?” Yup. “Vamos safar-te.” E safam-me. O bilhete para Donetsk só se tira em Moscovo. O revisor continua desconfiado e pede-lhe, a ela italo-portuguesa, um papel escrito à mão a confirmar tintim por tintim. Obrigado, obrigado, agora escreva isso com letra decente, hã? Ela revira-nos os olhos, sorri, cumprimenta-nos e siga para Moscovo.

Lá, outra aventura. Primeiro, não há lugar no avião. Vinte minutos depois, já há um, no fim do avião. ‘Bora. É a fila 35, lugar F, paredes-meias com a casa de banho. Se fosse esse o “problema”, estaríamos lançados para uma viagem de 100 minutos bem dormida. Mas não, sonhamos muito, com futebol e cânticos insistentes de Cristianoooo Ronaldoooo. De repente, o pesadelo. Um murro no estômago para acordar, outro no ombro para nos entregar a bandeja do almoço e ainda um terceiro para dar o ok. É aí que chegamos à génese de tudo: Portugália ou Ispaniá? A honestidade ganha pontos, o descanso nem por isso. As três filas adiante estão de olho em nós, entre curiosidade e estupefacção, como quem diz “ah, então é assim que se vestem em Portugália”.

As perguntas seguintes são: Porto, Braga ou Lissabon? Benfica ou Porto? E segue-se um audível Danny. Os cinco amigos do lado são russos, todos têm bilhetes para o Portugal-Espanha e gritam por Portugália. Mais ainda por Cristianoooo Ronaldoooo. Hum, afinal aquilo não era um sonho. Cristianoooo Ronaldoooo, Cristianoooo Ronaldoooo, Cristianoooo Ronaldoooo. Os outros passageiros viram-se para a frente e coram. Nós também, mas por outros motivos. Por cada resposta certa no questionário anterior, o amigo do lado serve-nos conhaque Camus naquele mini-copo servido no tabuleiro do almoço. Segue-se um brinde com toda a malta, o alçar do copo e cá vai disto. O Camus não nos ensina russo mas aviva-nos a memória daquela equipa soviética do Euro-88. Dizemos Dassaev, eles dizem Dasaev. Continuamos por aí fora: Baltacha é Baaaltacha, Khiditualin é Quidiatuline, Kuznetsov é Quuznetsove, Rats é Ratzzz, Mikhailichenko é Mychalichenko, Litovschenko é Litochenko, Aleinikov é Aleinikov, como Zavarov, Belanov e Blokhin. Treinador, Valeri “Mourinho e Villas-Boas pfffffffff” Lobanovski the best. Por cada nome, um gole de Camus. É da maneira que serve de aperitivo para o arroz de peixe.

Antes de aterrarmos em Donetsk, as perguntas ao ET. Vieste de onde, porquê, quando, como. Só conseguimos arrancar estímulos com as palavras journalist e Belanov. “Entrevistaste o Belanov? E ele disse o quê?” Basta o Camus deixar de fazer efeito e já vos conto. Enfiam-me uma barra de chocolate, obrigam-me a comê-la (para a sobriedade total?) e cá vai ela, a entrevista.

Belanov?

Tiveste sorte, apanhaste-me aqui por acaso. Devia estar a pescar.

A pescar?

Tenho dois hóbis, e a pesca é aquele de que gosto.

Mas tens um hóbi de que não gostas?

Ginásio. Musculação, sabes? Não tenho assim muita paciência, mas tem de ser para continuarmos em forma e não fazermos figuras tristes nos jogos de veteranos do Dínamo Kiev [risos]. Vou lá muitas vezes. Quer dizer, não sou nenhum Arnold Schwarzenegger mas levanto 135 quilos.

Uauu, mas o Belanov era conhecido pelos seus sprints e mudanças de velocidade.

É verdade, podia ter sido um outro tipo de atleta mas o futebol está-me no sangue.

Quem o levou a pensar isso?

Eu, sempre eu. Mas quem me levou ao limite foi mister Valeri.

Lobanovski?

Valeri Lobanovski. Na sua autobiografia, não me trata por Igor ou Belanov, mas sim por Bola de Ouro [Ganha em 1986, à frente de Lineker e Butragueño]. É um reconhecimento para a vida.

Mas não foi o Lobanovski que o impediu de sair para o estrangeiro?

É verdade. Em 1986, após a conquista da Taça das Taças [3-0 ao Atlético de Madrid] e dos meus quatro golos no Mundial do México, recebi um convite da Atalanta de Itália. Aceitei mas Lobanovski recusou. Não podiam sair dois jogadores ao mesmo tempo e como o Zavarov já tinha ido para a Juventus…

Assim, o seu primeiro clube no estrangeiro foi o Borussia M’Gladbach, já nos anos 90.

Correcto. Apanhei lá o Effenberg e o Bierhoff, dois monstros do futebol, mas o nosso treinador não era nada brilhante no campo táctico e psicológico.

Quem era?

Não vale a pena dizer o nome. Procura tu. Só te posso dizer que não era nenhum Lobanovski.

Lobanovski, outra vez?

Era um génio. Estava anos e anos à frente dos outros.

Já sei, já sei. Com computadores, estatísticas, autoridade…

Valeri era o máximo. O meu filho chama-se Valeri em honra dele, sabes? Foi um homem importante para o crescimento da marca desportiva URSS.

Como é que ele surge na sua vida?

Um dia, marquei dois golos ao Dasaev num Dínamo Kiev-Spartak Moscovo. Foi o suficiente para chamar-lhe a atenção e ser convocado para a selecção.

E?

A estreia foi a pior possível, perdemos 4-2 com a Dinamarca em Copenhaga. Aquele Danish Dynamite do Mundial-86, sabes? Deram cabo de nós e a imprensa culpou-me pela derrota. Valeri defendeu-me e manteve-se fiel aos seus princípios. Joguei sempre. Um dia, em Paris, no Parque dos Príncipes, demos 2-0 à França de Platini, Tigana, Giresse. Saímos ovacionados de pé e eles despachados com lenços brancos. É das melhores recordações. Marquei o 1-0 e dei o 2-0 ao Rats. Também lesionei o Platini [risos].

Isso foi qualificação para o Euro-88, não foi? Fala-me desse Euro. Diziam que a URSS praticava o futebol futurista, do ano 2000. Também havia quem especulasse com doping.

Doping? Pfffffff, francamente. O nosso doping era correr na floresta todos os dias. E o outro doping era o Lobanovski.

[outra vez?]

Ele reuniu jogadores de toda a URSS (Minsk, Kiev, Moscovo, Tbilisi) e formou uma equipa histórica.

Que esteve quase a ganhar o Euro-88. Conta-me lá essa história?

Foi pena aquela Holanda na final mas eles mereceram. Em cinco anos na era-Lobanovski, foi a única derrota merecida. As outras, não.

Quais outras?

Portugal-URSS, 1-0 na qualificação do Euro-84. Aquilo é penálti onde? Ahhhh, francamente. Bélgica-URSS, 4-3 dos oitavos-de-final do Mundial-86. Aqueles dois golos deles em fora-de-jogo? Ahhhh, francamente. Fomos roubados porque éramos a URSS, um país diferente, que defendia outros ideais.

[Não tenho como responder-lhe à letra; vou à pesca?]

No Euro-88, o primeiro jogo foi sensacional. Em Colónia, o estádio estava todo laranja e acho que a Holanda nos subestimou. Ganhámos 1-0, passe meu para o Rats e grande remate cruzado. Joguei a extremo-direito e a meio da segunda parte já estava com tantas cãibras que nem conseguia andar, quanto mais correr atrás deles.

No jogo seguinte, um-um com a surpreendente Irlanda.

Eles tinham ganho à Inglaterra e eram autênticos guerreiros, muito corajosos. Iam a todas as bolas com uma energia. Fizeram o 1-0 mas nós empatámos pelo Protasov. Mais uma vez, o passe foi meu.

Quando chegou o jogo com a Inglaterra, já estavam apurados então?

Isso.

Mas deram 3-1.

Foi um… [o tradutor diz-nos espancamento mas talvez seja demasiado forte, ou não!] Coitados deles, ainda estavam esperançados em sair do Euro a ganhar mas não lhes demos hipótese sequer de levantar a cabeça.

Aparece a Itália na meia-final.

Não joguei por lesão mas foi o jogo mais inesquecível dessa campanha. Os italianos não respiraram [a posse de bola dos soviéticos foi de 68 por cento] e olhe que já estavam avisados. Em Fevereiro desse ano, fomos a Bari ganhar-lhes 4-1. Em Estugarda, foi “só” 2-0.

Falta a final, com a Holanda.

Tenho mesmo de falar disso?

Já sei que falhou um penálti…

Falhar um penálti? Quando havia 0-0, o Gotsmanov deu-me uma bola para golo e atirei para as nuvens. Com 1-0, acertei no poste. E só depois, com 2-0 naquele pontapé um num milhão do Van Basten, é que falhei o penálti. Foi uma tarde francamente negativa e o Lobanovski que me poupara no jogo com a Itália para ser o ás de trunfo dessa final.

O que lhe disse Lobanovski?

Lembrou-me casos de grandes jogadores com penáltis falhados, como Maradona. Mas isso serviu de pouco. Durante uma semana, nem dormi.

E agora?

Vou à pesca. Tem mesmo de ser. Adeus.

Belanov entra no seu Volvo azul-escuro e sai de cena. Nós vamos para o aeroporto. Segue-se Viena, Moscovo (grrr), Donetsk e penáltis (grrrrrr).