Azar, azar e mais azar. Até 22 de Junho de 2008, os adeptos espanhóis não podiam sequer ouvir falar nas provas de selecções. Em comum, tinham todos o mesmo: grandes expectativas, grande ambição (alguma arrogância) e uma despedida em lágrimas. Por mais que se esforçassem, havia sempre algo a estragar o sonho, a ilusão de que agora Ronaldo fala. Era o árbitro que inventava, o momento inesperado que transfigurava o jogo ou, na maior parte das vezes, o azar das grandes penalidades.
O momento de viragem chegou a 22 de Junho, nos quartos-de-final do Euro-2008. O dia tinha a carga mais negativa da história da selecção espanhola (já lá vamos), mas aquele desempate com a Itália ia marcar o início de uma nova era, cheia de vitórias e celebrações. Depois de um nulo no final dos 120 minutos, De Rossi e Di Natale falharam para os italianos e Güiza para a selecção espanhola. No quinto penálti, Fàbregas tinha no pé direito a hipótese de garantir o apuramento para as meias-finais. O jogador do Arsenal sentiu a pressão, mostrou que não se deixava afectar e enganou Buffon, com bola para um lado e guarda-redes para o outro.
A história que se segue ao penálti de Fàbregas resume-se em poucas palavras: título europeu com 1-0 à Alemanha e mundial, em 2010, com 1-0 à Holanda. O que veio depois é simples, mas como explicar tudo o que tinha acontecido até então? Que justificação para o azar ter virado às costas à Espanha naquele dia depois de anos a persegui-los?
Maldito dia, parte I Voltamos a 22 de Junho, mas de 1986. Tal como 22 anos mais tarde, os espanhóis decidiram o apuramento para as meias-finais nas grandes penalidades, mas com a Bélgica. A diferença esteve na eficácia dos belgas e no insucesso de Eloy, autor do segundo penálti do desempate. Era a primeira vez que 22 de Junho se cruzava com a selecção espanhola e o prenúncio não era favorável. Nos anos seguintes, as eliminações no Euro-1988 (derrotas previsíveis com as favoritas Itália RFA) e no Mundial-1990 (no prolongamento com a Jugoslávia) foram menos dramáticas e em 1992 os adeptos tiveram um momento de tranquilidade com o insucesso espanhol na qualificação. A partir daí, não mais a La Roja voltou a falhar uma fase final, embora em alguns casos os espanhóis quase o tenham desejado.
Maldito dia, parte II E chega o Euro-1996, em Inglaterra. Dizem que a selecção está no melhor momento de sempre e, apesar de ainda não ter o avançado Raúl – só se estrearia em 1998, tinha a garra e a criatividade de Kiko, médio que se tinha acabado de sagrar campeão ao serviço do Atlético Madrid, e ainda a técnica de Alfonso.
O jogo dos quartos-de-final, com a Inglaterra, tinha muito para correr mal: o adversário era o anfitrião, a decisão ia ser nas grandes penalidades e, claro, o encontro estava marcado para 22 de Junho. O prenúncio estava certo: Hierro falhou o primeiro penálti e Nadal permitiu a defesa a Seaman no remate decisivo. Mais uma vez, os espanhóis choravam e assistiam, ao fundo, à festa dos outros, sempre os outros.
Maldito dia, parte III Mais um pulo na máquina do tempo, directamente para 22 de Junho de 2002. A confiança dos espanhóis era tão alta que as capas da imprensa espanhola tratavam a equipa como se já fosse campeã. Seis dias antes, nos oitavos-de-final, a vitória nas grandes penalidades com a Irlanda – apesar de Juanfran e Valerón terem falhado – dava a entender que a maldição estava ultrapassada. Mas o árbitro egípcio Gamal Al-Ghandour tinha outra ideia para os quarto-de-final, com a Coreia do Sul. A equipa anfitriã estava a ser empurrada pela arbitragem e a selecção de Camacho não conseguiu melhor do que levar o jogo para os penáltis. Depois de Eloy-1986 e Hierro e Nadal-1996, a fava desta vez calhou a Joaquín.
Ajuste de contas O 22 de Junho de 2008 foi um ajuste de contas com a história. Por cada Fernando Navarro, Andrés Palop, Sergio García, Juanito ou Rubén de la Red campeão, havia uma memória dos génios que nunca tinham conseguido chegar longe, fossem Butragueño, Zubizarreta, Hierro ou Raúl.
Outros houve que tiveram a oportunidade de vingar a desilusão do Mundial da Coreia do Sul/Japão. Iker Casillas, Carles Puyol e Xavi eram os resistentes e receberam de braços abertos a nova geração dourada que trazia Iniesta, David Silva, Sergio Ramos, Xabi Alonso, Fàbregas e companhia. De azarada, a Espanha passou a uma selecção mal habituada onde qualquer coisa menos do que a final parece um fracasso. Contra Portugal, o ambiente não será diferente. Pode ser que o 27 de Junho também se torne maldito.