Hey girls, you better listen to me
I’m getting starved for your company
All day Monday, and all day Tuesday
I played football, there’s nothing on the telly
Now ever since I was just 13 years old
Well, I always felt shy but I acted so bold
I never had the money and I never had the class
But I always seemed to get myself a Saturday night piece of ass!
No meio da Praça da Independência, em Kiev, um grupo de adeptos ouve “Where the Boys Go”, dos Rolling Stones, em altos berros. À sua frente, um outro grupo insurge-se contra tudo aquilo. Vaias monumentais, compatíveis com o som saído dos altifalantes do rádio. À medida que nos aproximamos, mais estranho é todo aquele aparato a que os residentes se sujeitam com significativa indiferença. Mas então os adeptos da selecção italiana estão a curtir os Stones e os ingleses começam a assobiar?
Uma volta de 360 graus à praça confunde-nos ainda mais, porque os que estão vestidos com a camisola azzurra têm escrito “Mick Jagger” nas costas. Mas o que se passa aqui? Entrámos sem querer num universo paralelo? Os ingleses abafam cada guitarrada de Keith Richards com gritos imperceptíveis – e não, não têm “chewbacca” escrito nas costas das camisolas, apenas “Lineker”, “Owen” ou “Waddle”. E nem o vozeirão de Mick Jagger escapa à ruidosa indignação. Reforçamos a ideia: se isto é o universo paralelo, então queremos ouvir o José Cid.
Perguntamos timidamente o que se passa ali. Um dos ingleses, o Waddle, digamos assim, soletra “Mick Jagger”, cospe para o chão e acaba de beber a cerveja enlatada. Huuum, se calhar é melhor ir perguntar ao Owen, parece-nos menos revoltado com a vida. Indeed. Com uma voz plácida (muito diferente da de Pavarotti), diz-nos: “Mick Jagger deve ser o único inglês à face da Terra a torcer pela Itália no domingo.” Porquê? “Porquê?” Sim, porquê? “Sabes onde estavam os Stones quando a Itália venceu o Mundial-82?” Não. “Em Turim, a dar um concerto.” Huuum. “Sabes onde estavam os Stones quando a Itália venceu o Mundial-2006?” Não. “Em Milão, a dar um concerto em San Siro.” Okaaaay, coincidência? “Ele é mais italiano que inglês e isso fere-nos o orgulho. Fazemos uma viagem de horas e horas para ver futebol e deparamo-nos com isto, italianos com Jagger nas costas, pfffff, não podemos aceitar isto, andam a gozar connosco.” Entendemos, é como se os ingleses andassem identificados com o Toto Cutugno do “Lasciatemi Cantare”.
Já agora aproveitamos a deixa. O Jagger é de que clube? “De todos e mais alguns.” Vá lá, a sério. “Digo-te a sério. Ele dá um concerto em Itália e veste a camisola deles. Já o vi na Escócia com a camisola da Escócia. Já o vi na Argentina com a da Argentina. E por aí fora. Numa entrevista disse que era do Arsenal e do Tottenham. Como é possível ser-se de dois rivais, hein? Não encontras ninguém que seja do United e do City em Manchester, é impossível. Em Londres também não devias encontrar um do Arsenal e do Tottenham. É como ter dois tipos de sangue, não dá.”
É aí que entra o Lineker em acção. Com a classe que lhe é reconhecida. “Ele tem razão sobre ser-se do Arsenal e do Tottenham, mas o Mick é um democrata e há gente que não o quer entender. Mas ele é inglês, eu estive ao lado dele no Inglaterra-Argentina do Mundial-98, aquele da expulsão do Beckham, sabes? O que ele gritou por nós. In-ga-la-nd In-ga-la-nd In-ga-la-nd In-ga-la-nd In-ga-la-nd.” Começam os cânticos e aparecem ingleses vindos sabe-se lá de onde. “In-ga-la-nd In-ga-la-nd In-ga-la-nd In-ga-la-nd In-ga-la-nd.”
A euforia está só a começar e o Lineker recupera o dom da palavra. “No dia da final desse Mundial, entre França e Brasil, perguntaram ao Mick quem ia ganhar. Sabes qual foi a resposta dele? ‘Se o Beckham não tivesse sido expulso, nós seríamos os campeões do mundo.’ Nós, estás a ver? Nós, ingleses. Não há dúvida. Ele é inglês. E vou contar-te mais uma coisa”, enquanto nos agarra o braço com mais força que o habitual porque está em queda com tantos saltos, “o pai do Mick é um homem muito importante na história do desporto na Grã-Bretanha. Foi ele que trouxe” ups “levou o basquetebol para lá e fundou a federação. É verdade, foi ele. Era professor de Ginástica e incutiu no Mick o gosto pelo críquete. Vai lá, podes perguntar-lhe.”
Passemos então para o outro lado da fronteira, devidamente sinalizada com o tal rádio aos berros. Parece aquele videoclip “It’s Like That”, dos Run-D.M.C. Uns de um lado outros do outro. Em vez de um concurso de movimentos hip-hop, cânticos. Os italianos não falam, gesticulam. Já sabemos muito bem o que a casa gasta, mas estes exageram. A quantidade de garrafas de cervejas (mal) escondidas atrás de um pilar explicam o imparável balançar das mãos enquanto deitam cá para fora à toa a amargura de não ganharem um Europeu desde 1968. Depois disso são bicampeões mundiais em 1982 e 2006, nos tais anos de Mick Jagger, mas quanto a Europeus nem vê-los.
O único bêbedo mas lúcido chama-se Giorgio. Cambaleia para trás e para a frente como uma cadeira de baloiço. E nós temos de o imitar para evitar um corte no monólogo. “Somos a Itália, não tememos ninguém, nem a Espanha. Mas temos de ser mais equipa, mais para a frente, senão não chegamos a lado nenhum. Em resumo, temos de ser Giorgio Best.” O quê? Tira o passaporte do bolso de trás das calças e aponta-nos para o seu primeiro nome “Giorgio”. E depois soletra no ar B-E-S-T. Mas quem é esse? “Giorgio Chinaglia, o jogador italiano mais influente do pós-guerra. Só o Roberto Baggio se aproxima dele, mas não lhe chega sequer aos calcanhares. Giorgio Best é o maior. Temos de ter esse espírito.”
Já ouvimos falar desse Chinaglia mas pouco. Avançado tipo bisonte, grande responsável pelo primeiro título de campeão italiano da Lazio em 1974, graças aos seus 24 golos em 30 jornadas. Depois emigra para o Cosmos dos EUA, mas é tudo. Não há mais informação. Giorgio senta-se num banco de mármore, deixa descair os ombros e começa a descrever o outro Giorgio. Chinaglia. Ou Best. O sol bate-nos de frente, os detalhes impressionantes também. “Introdução: bem- -vindo ao mundo do símbolo da Lazio dos anos 70 e do Cosmos disco-rock. Bem–vindo ao mundo de Chinaglia, o homem que jogava futebol com uma arma escondida no saco desportivo, humilhava os adeptos adversários e considerava Pelé um companheiro mais.” Isto começa bem, são precisos óculos 3D? “Vou contar-te histórias ao acaso, sem ligação cronológica.” Tipo Chinaglia é…
“Chinaglia é o jogador que costumava fazer peito com todos os adversários que se lhe metessem à frente. E dizia-lhes ‘é melhor ficares quieto senão vais ficar em apuros’. Mas essa nem é a melhor. Ele fazia isso aos companheiros de equipa, àqueles que lhe faziam um mau passe ou falhavam um golo na sequência de uma jogada sua.”
“Chinaglia é o jogador que uma vez, em Milão, depois de a Lazio sofrer um golo do Inter, retomou o jogo com um pontapé forte para a frente. A bola passa pela grande área e ultrapassa a linha de fundo. Pontapé de baliza para o Inter. Ele vira-se para trás e diz aos companheiros: ‘É isto que quero que façam para o vosso bem e para o bem dos meus golos.’”
“Nunca houve jogador com mau perder como o Chinaglia. É capaz de deixar a equipa no balneário, apanhar um táxi para o aeroporto e ir para casa sem dar cavaco a ninguém. Para ele o futebol só tem lógica se a equipa dele ganhar e com um golo seu.”
“Chinaglia é o jogador que prolonga os treinos da Lazio campeã italiana em 1974. Esse plantel estava dividido em dois grupos. O dele e o do Re Cecconi. São rivais, até dentro de campo. Os treinos são sempre entre esses dois grupos e só acabam quando Chinaglia é o vencedor. Às vezes, esses treinos duram horas, horas e horas. Só acabam à noite, com os faróis dos carros a iluminarem o campo.”
“Chinaglia é o homem que prolonga os jogos de cartas no autocarro da Lazio até ganhar ao médico, ao massagista, ao treinador, aos companheiros e ao motorista. Sem isso, recusa-se a sair do autocarro. E isto não é mito urbano. Aconteceu muitas, muitas vezes.”
“Chinaglia é o jogador que cresce no País de Gales [Cardiff] e recusa constantemente o râguebi. Detesta os tackles e o constante agarrar da camisola. Prefere o futebol, a fantasia. Quando aterra em Itália com uma gabardina verde, um guarda-chuva e a calçar o 48 é tratado como um ET.”
“Chinaglia é o jogador que se estreia pela selecção italiana com a Finlândia sub-23. No fim do jogo, impede o guarda-redes italiano de trocar de camisola com o adversário: o argumento dele ‘isto é a selecção do Mickey!’”
“Chinaglia é o homem que está a comer pipocas num cinema quando dois adeptos da Roma entram na sala e dizem para a plateia ‘olha, olha, o corcunda maldito’. Quando as luzes se apagam, Chinaglia aproxima-se deles e diz-lhes ‘sou eu, o corcunda’. O cinema parte-se a rir e a sessão é adiada por alguns minutos.”
“Chinaglia é o jogador que falha um golo de ângulo impossível durante um jogo do Cosmos e é recriminado por Pelé, em melhor posição. Então ele diz ‘eu sou o Chinaglia, se o Chinaglia rematou à baliza é porque a baliza estava na sua mira, e tu encosta-te mais para a ala, estás a entrar muito no meu território.’”
“Chinaglia é o jogador com mais golos na história da NASL [193 em 213 jogos, com o recorde de 53-43 nos playoffs] e aquele que mais curiosidade desperta entre os famosos, desde Henry Kissinger a Robert Redford, passando por Mick Jagger. Saíam juntos à noite. Passavam as férias juntos.”
Em Kiev, Ucrânia