Van der Vaart e Ibrahimovic unidos. “Ai procuras confusão, é?”


Van der Vaart marca. Ronaldo bisa. Portugal segue em frente, como sempre em Europeus. Holanda cai na fase de grupos, como nunca na sua história desde que há 16 finalistas. Estamos em Kharkiv, a cidade mais soviética de todas as ucranianas do Euro. Do aeroporto ao estádio é sempre a mesma avenida, larguíssima, com blocos…


Van der Vaart marca. Ronaldo bisa. Portugal segue em frente, como sempre em Europeus. Holanda cai na fase de grupos, como nunca na sua história desde que há 16 finalistas. Estamos em Kharkiv, a cidade mais soviética de todas as ucranianas do Euro. Do aeroporto ao estádio é sempre a mesma avenida, larguíssima, com blocos rígidos e sem graça nenhuma de um lado e do outro. Do estádio para o aeroporto, a noite e a falta de iluminação disfarçam pontualmente a monotonia paisagística.

Quando chegamos ao terminal B estacionamos ao lado de um autocarro. O de Portugal ou o da Holanda? Netherlands. E os jogadores saem um a um, aplaudidos pelos adeptos, todos devidamente identificados com as camisolas laranja. Um diz 4 Rijkaard, outro 88 Winner e por aí fora. Cansados do jogo e do peso das impensáveis três derrotas na fase de grupos, os jogadores reagem com um sorriso fechado. Sneijder é o mais acarinhado e até recebe uma bandeira da Holanda. Devolve-a com uma saudação calorosa (uma palmada gentil no ombro do adepto).

Van der Vaart segue-lhe os passos e só olha em frente para evitar perguntas. Perante a insistência do i sobre o golo a Portugal, um dos poucos momentos dignos da romântica Holanda neste Europeu, o capitão holandês limita-se a responder com um encolher de ombros, “um golo só tem peso em caso de vitória, de resto é para a estatística…” e ergue ligeiramente o queixo em sinal de indiferença. Eles estão quase a subir as escadas rolantes para as partidas dos voos internacionais, é agora ou nunca: “E como está aquela história com o Ibrahimovic?” Van der Vaart muda de expressão, faz cara de mau e desabafa: “Ai procuras confusão, é?” Uma senhora fardada sorridente estende-me o braço à altura da anca e proíbe-me de ultrapassar aquela linha amarela. “No hard feelings, Van der Vaart?” Não nos responde.

Falta-nos ouvir a outra parte. Se desse para perguntar ao Ibrahimovic é que era, mas não nos arriscamos com um especialista em artes marciais. Ou arriscamos? Náááá, não estamos com disposição para mais aventuras. São 2h32 e vamos embarcar para voltar à Polónia. Como isto é o Euro-2012 e não há voos directos a preços acessíveis, iniciamos uma viagem memorável Kharkiv-Varsóvia com escalas em Istambul e Viena para chegar a tempo de ver o Portugal-República Checa dos quartos-de-final. Bem, isso é o que veremos…

No detector de metais no pasa nada. Na alfândega pasa tudo. A polícia sorri, o polícia não. Querem estampar a Ucrânia na última página e deparam-se com a pluralidade de selos. À surpresa, sucede-se a expressão de indignação. Uiii, vai ser bonito vai. Perguntam-nos o que é aquilo, respondemos que é o Checkpoint Charlie em Berlim. Um pedaço do muro de pé com um guarda fictício a carimbar os selos dos quatro lados da fronteira que divide então a RFA da RDA. Um selo alemão, outro francês, mais o americano e ainda o russo. É aqui que está o problema. “Mas como é conseguiste isto?” Como, como? Não entendemos a pergunta. De férias, em Berlim. Está aí a data e tudo, Fevereiro de 2012. “Sim, mas este selo russo já não se usa, como é que conseguiste?” Entretanto já estão mais dois guardas naquele minigabinete a folhear o passaporte. E chegam mais três. Já somos oito e só queremos um selo para sair dali.

Passam-se uns minutos, as perguntas repetem-se e já não conseguimos dar a volta ao texto, até que nos lembramos da palavra-chave: souvenir. Os sete polícias continuam iguais a si mesmos, a mulher-polícia descontrai-se. E descontrai-nos. “Achámos estranho teres este selo russo, mas foi em Berlim não foi?” Sim, sim, souvenir. Pausa para olhares cruzados. E se dissermos souvenir novamente, resultará? Outra pausa. A polícia explica qualquer coisa aos colegas e voltamos ao guichet. Com o passaporte na mão, o polícia está indeciso com o carimbo na mão a dar a dar e pergunta-nos “queres o nosso selo?” Sorrimos (sem dizer souvenir, isso é que não!) e acenamos afirmativamente com a cabeça. “Ou queres o russo?” Isto foi encomendado pelo Van der Vaart, só pode. Com um ar ainda mais sério, este polícia mal-humorado vinca a página a olhar-nos de frente e repete “Ucrânia ou Rússia?” A senhora intercede e o polícia lá carimba. A contragosto, diga-se. Isto seria muito mais fácil com a Nikita do Elton John.

Por fora o avião para a Turquia é branco. Por dentro laranja. É só holandeses. Animados, a cantar. Sentamo-nos ao lado de dois, um do Vitesse, outro do Feyenoord. Começam a contar-nos histórias sem ninguém lhes perguntar nada. Que estiveram em Portugal em 2004, venderam os bilhetes dos três jogos da fase de grupos da Holanda por um bom dinheiro que lhes deu para curtir o Euro num apartamento no Estoril com carro alugado até ao dia da final, que viram na casa de uma família portuguesa no Algarve. Feitas as apresentações, começam a falar dos dias de glórias. O do Vitesse cala-se, o do Feyenoord agita-se. O avião vai levantar voo e ainda está a falar da equipa campeã holandesa com Gullit e Cruijff. Só então perguntam de onde somos. Portugal. “A sério?” E o que fazemos? Jornalista de imprensa escrita. “A sério? E hoje falaste com quem?” Apanhei o Boulahrouz e depois o Van der Vaart. “A sério? E ele?” Não apreciou o assunto Ibrahimovic.

Está o caldo entornado. As luzes do avião estão desligadas mas nota-se o brilho de espanto nos olhos do holandês. Palavra puxa palavra e já temos mais cinco laranjas à nossa volta. “Mas então foste perguntar-lhe isso? Bloody hell [tradução possível para a complexidade da língua deles]! Mas então não sabes da incompatibilidade entre eles?” Sim, sei. Por isso mesmo. Continuam inimigos? “Não sabes que saiu um vídeo do Van der Vaart a jogar golfe e a fazer pontaria com o taco à cara do Ibra?” Nãããão, quando? “Uma semana ou duas antes de o Europeu começar. Mas o historial entre eles já vem de longe.” Bem sei, Ajax, não é? “Yaaa, dos tempos do Ajax mas um Suécia-Holanda. Primeiro, o Ibra atirou-se ao Heitinga, também do Ajax, só depois ao Van der Vaart.”

Ao que sabemos, uma entrada de pé em riste e o holandês sem jogar durante 28 dias. Estamos em Agosto de 2004 e o mercado de transferência está a fechar. Van der Vaart é imediatamente substituído e atira-se a Ibrahimovic. “Não bate bem da cabeça, já o disse várias vezes, hoje confirmou-se. Não só me acertou de propósito como nem sequer me pediu-me desculpa. Uma vergonha, espero que o Ajax diga alguma coisa sobre o assunto. Como se justifica um companheiro lesionar outro?” Nem uma palavra do Ajax. Nem de Ibrahimovic. Três dias depois há jogo de campeonato holandês entre Ajax e NAC Breda. Goleada com o 5-1 de Ibra a valer o epíteto de golo da semana. Do mês, do ano. Ibra finta repetidamente três jogadores, deita o guarda-redes e parte para a celebração. Alguém o derruba e os companheiros saltam-lhe para cima. Nas bancadas, a alegria incontida dos adeptos contrasta com o ar sério de Var der Vaart. A televisão foca-o por uns segundos e o holandês parece uma estátua. Ibrahimovic é contratado pela Juventus nesse mesmo dia e distancia- -se de Van der Vaart.

Em Istambul há tanta demora na entrega de um novo cartão de embarque para o segundo voo do dia que os holandeses distraem-se e são ultrapassados por um avião não se sabe bem de que terra. Os homens têm todos barba, as mulheres usam todas um lenço na cabeça e furam a fila sem ai nem ui. Indiferentes a tudo isto, os funcionários do aeroporto atendem-nos com uma amabilidade extrema. É a quarta derrota da Holanda. Mas eles não esmorecem, estão ali a jogar à rabia com uma bola de peluche no largo corredor. São cinco da manhã! À medida que são eliminados, juntam-se a nós e ao holandês do Feyenoord. Amontoam–se, ouvem a história do Van der Vaart e dão-nos pancadas amigáveis nas costas. Todos insistem na mesma tecla: se podes, tens de ir a Kiev ver o Ibra. É uma peça. Vai lá, chateia-o e envia-nos a página do jornal com a tradução. Aqueles já despachados, cumprimentam-nos solenemente. Os da fila de espera ainda têm tempo para falar mais um pouco sobre Van der Vaart. Finalmente despachados, seguem para Roterdão ou Amesterdão, nós para Viena. Depois Varsóvia numa comboiada de 11 horas. A seguir (pronto, convenceram-me) Kiev.

Vruum, num simples estalar de dedos que dura um dia e meio de viagem, já cá estamos para o Suécia-França e temos a oportunidade de ver a Suécia empurrar a França para o indesejável jogo com a Espanha nos quartos-de-final. Culpa de quem? Ibrahimovic, claro. Um sensacional golo acrobático indica o caminho da vitória sueca. Na zona mista, o capitão está animado. Brinca com um jornalista italiano (“Queres dicas para ganhar à Inglaterra?”), conversa longamente com os suecos e depois… bem, depois é o cabo dos trabalhos. Ou das Tormentas. Afinal estamos frente a frente com o personagem a quem a directora do colégio em Malmö proibira os professores de castigar pela simples razão de isso ser muito pior do que deixá-lo à solta. “A única vez que o castiguei fechei–o numa sala. Partiu os móveis todos a pontapé. Tinha 11 anos.”

As suas travessuras são mais que muitas. Uma vez fez-se passar por polícia no Red Light District de Malmö e prendeu um homem a falar com uma prostituta. Trata-se de um médium e acabam todos presos quando um polícia verdadeiro os vê a discutir quase à chapada. No seu primeiro dia no Ajax, um companheiro oferece-lhe boleia. “Cá me arranjo”, recusa Ibra orgulhosamente. No dia seguinte aparece de Ferrari. Desta vez o Ferrari é o autocarro da Sweden estacionado lá fora. Como não queremos uma reacção à Van der Vaart, já temos o guião estudado e fazemos-lhes as perguntas de sempre sobre o jogo, o golo, os favoritos do Euro, a braçadeira de capitão, o Mundial-2014, o Milan e… Van der Vaart. O sueco olha-nos de frente, agarra na nossa credencial e pergunta “jornalista hein?! De quê, confusão? Sorte a tua, senão…” e pisca-nos o olho antes de abandonar a zona mista, o estádio e o Europeu. Hããã, quem diria, Van der Vaart e Ibrahimovic sintonizados. Valeu a pena toda a trabalheira e não levámos nenhum selo. Físico, pelo menos.