Semana após semana ia consultando os sites de sondagens e a minha ‘opinião’ ia-se confirmando. Todos os sinais que recebia dos media, das redes sociais e das pessoas que conheço demonizavam DonaldTrump, realçando as suas tristes estórias e zombando de cada tirada grotesca e episódio do género ‘grabthembythepussy’ que regularmente iam sendo revelados.
Eu próprio me encarreguei de fazer parte do grande movimento de luta contra DonaldTrump, amplificando todas as estórias que iam surgindo sobre ele (todas, naturalmente, negativas). Verdade seja dita nunca ‘partilhei’ ou ‘gostei’ nenhum post ou notícia que falassem sobre as qualidade de Hillary ou sequer sobre as suas propostas. Hillary não era muito carismática, mas entre Belzebu e a Sonsinha, que ganhe a Sonsinha (as Sonsinhas têm sempre um ar responsável). Havia um monstro a abater, e todos os esforços eram poucos. Além de que as ‘cenas’ de Trump sempre providenciavam alguma diversão e gozo coletivo (o meu coletivo). E as sondagens davam uma margem confortável ao cenário desejado.
Na madrugada das eleições, acordei a meio da noite para alimentar o bezerro que tenho lá por casa, e abri o telemóvel para constatar a derrota de Trump (não necessariamente a vitória de Hillary, note-se). E apercebo-me que Trump já tinha 276 lugares do colégio eleitoral (precisava de 270 para ganhar). Espanto! Belzebu havia ganho. Como era possível? Entro em choque (ligeiro), tal a diferença entre a expectativa e a desgraçada realidade que se me apresentava àquela hora matinal. Trump havia ganho.
Como era possível? Tudo, todos estavam contra ele! Como podia eu (e todos os meus ‘outros’), estar tão enganado? O Brexit tinha acontecido, é verdade. Mas o Brexit foi uma brincadeira descuidada, algo que aconteceu por incúria de um grupo de políticos que não se esforçou realmente por não acreditar que alguma vez os cidadãos britânicos iriam votar como votaram. As eleições nos EUA foram um processo ‘a sério’, com oposição e luta reais.
E, pelos vistos nem todos estavam contra Trump. Havia pelos vistos um enorme grupo de cidadãos votantes dos EUA que estavam mais contra Hillary que contra Trump, e que nesse dia sairam de suas casas e, no segredo da cabine de voto, colocaram legitimamente a sua cruz em Trump. E aconteceu o que ‘todos’ tomavam não só como improvável, mas como impossível. O ‘populismo’ havia ganho. O mundo ia acabar (em breve), era altura de emigrar para outro planeta. Ou, histericamente, fazer uma revolução (abolindo a democracia) para negar a Trump a cadeira mais poderosa do mundo.
Recuperado do choque, confrontado com a minha própria dissonância cognitiva, tive de colocar em causa a minha própria ‘opinião’, para tentar perceber o que se havia passado. Tinha de haver uma lógica por detrás deste absurdo.
Com efeito, a primeira coisa de que me apercebi foi que a grande maioria das pessoas que conheço e dos media que costumo ler estavam tão em choque quanto eu. Nenhum deles concebia sequer esta vitória. Porquê? Investigando vim mais tarde a aperceber-me de um fenómeno novo: a criação de ‘bolhas’ de percepção em grupos homófilos de população (i.e., pessoas com gostos e estilos de vida similares). Ou seja, nem eu, nem a minha realidade ‘social’ lia ou tinha acesso a outras informações que não as que eram opostas a DonaldTrump (ver https://www.wired.com/2016/11/filter-bubble-destroying-democracy/). O facto de a maior parte das notícias chegarem hoje em dia às pessoas via redes sociais (que tendem a apresentar-nos conteúdos de acordo com os nossos gostos), em conjunto com comportamentos acríticos do género ‘vejo-o-cabeçalho-a-dizer-mal-do-Trump-e-uma-foto-do-anormal-e-partilho-sem-sequer-ler’ leva a que cada vez o leque e diversidade da informação a que temos acesso seja menor. Há cada menos o costume de ler a notícia, e muito menos de verificar se é ou não fidedigna. O que interessa são posts fofinhos ou que gerem indignação imediata, pois a leitura interfere no scroll-down. A somar a isto houve um claro enviesamento dos meios de comunicação (muitas vezes prejudicando a imparcialidade noticiosa) contra Trump, mesmo que implicitamente. Tudo isto gera uma onda de consensualidade acrítica que facilita o ‘groupthink', prejudicando a confrontação de perspectivas concorrentes e o debate de ideias contrárias.
Senti-me enganado por mim mesmo, por ter caído nesta ‘bolha’ percecional. Uma lição para o futuro.
O segundo tema da minha reflexão foi o erro clamoroso das sondagens. Trata-se de gente extremamente competente, que usa métodos e técnicas estatísticas imensamente testadas e complexas, que tem tido muito sucesso em anos passados na previsão dos resultados. Como haviam falhado tão clamorosamente? Neste ponto eu sentia mais segurança, pois consultava sites que agregavam resultados de sondagens de inúmeras fontes (neutras, democratas, republicanas), o que, estatisticamente, como aprendi em Probabilidades e Estatísticas e Análise Numérica, devia reduzir a probabilidade de erro. Mas falharam, redondamente. Foi então que ouvi falar do ‘Efeito Tom Bradley’ (ler http://www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-3936374/Did-voter-s-embarrassment-shame-fear-backing-Donald-Trump-explain-polls-wrong.html), ou ‘resposta por vergonha a sondagens’, que na prática quer dizer que quando inquiridas, as pessoas que iriam votar Trump não o diriam. O clima social anti-Trump foi tão forte, a clivagem social tão intensa, que as pessoas receavam dizer que estavam a seu favor, mesmo quando respondendo a inquéritos de sondagens supostamente anónimos. Em termos mais concretos, eu não conheço ninguém que tivesse afirmado ser a favor de Trump, e tenho hoje a certeza que eles existiam. E estas pessoas que ‘esconderam’ a sua preferência, ‘falseando’ as sondagens, votaram Trump. É um efeito preocupante, e que me parece já haver acontecido no caso Brexit.
Por fim, tentei perceber quem havia, afinal, votado em Trump. E deparei-me com uma série de explicações: sobretudo população branca, muitos mais latinos e mulheres votaram em Trump que o esperado, as áreas rurais deram o voto a Trump, etc, etc (podem ver alguns dados aqui: http://www.bbc.com/news/election-us-2016-37922587). Mas isto eram sintomas, e eu sentia que precisava de uma explicação mais profunda, de encontrar as causas por detrás do fenómeno. E encontrei este artigo (http://bruegel.org/2016/11/income-inequality-boosted-trump-vote/) em que um think-thank europeu sobre economia indicava, num estudo, que Trump teve uma vantagem eleitoral em estados em que a desigualdade de rendimentos entre estratos sócio-económicos era maior. Fez-se luz. Com efeito, há uma enorme faixa de população (não só nos EUA, mas em muitos países ocidentais) latente e não necessariamente homogénea que se sente progressivamente excluída, e que se está a transformar na força escondida que alimenta a onda de descontentamento e populismo que políticos mais oportunistas são exímios a explorar.
Esta faixa de população encontra-se, para mim, claramente identificada no seguinte gráfico:
A globalização das últimas décadas tem resultado em imensos ganhos para a generalidade do mundo, com especial enfoque nos países em vias de desenvolvimento. Tem sido um claro fator de melhoria dos rendimentos e da qualidade de vida da população nestes países, tirando milhões de seres humanos de um destino de pobreza miserável. Nem tudo tem sido perfeito, mas o resultado é claramente positivo.
Paralelamente, tem havido também claros benefícios para os países desenvolvidos, com uma excepção: a classe média-baixa destes países (os ’nossos’). Este segmento de população não só não tem visto o seu rendimento subir (ao contrário dos segmentos mais ricos, que têm conseguido ficar com a fatia de leão dos benefícios conseguidos nos países ocidentais, como se pode constatar no lado direito do gráfico acima), como se sente cada vez mais ameaçado ao nível da sua segurança no trabalho (sobretudo devido à progressiva pressão para a substituição tecnológica do trabalho) e consequentemente no seu modo de vida. Esta segmento de população (classe média-baixa ocidental) não domina os meios de comunicação social, não tem influência nos processos económicos e legislativos, e, graças a Hillary Clinton passou a ter um nome: os Deploráveis (theDeplorables). É esta gente que ao se sentir ameaçada tem de dar nomes aos seus medos, sejam eles imigração, deslocalização de fábricas para o estrangeiro, acordos de comércio livre, establishment, elites, wall street, etc, etc. E foi esta gente, que provavelmente ‘enganou’ as sondagens por vergonha, e que por sentir uma possibilidade de mudança, de ser ouvida, saiu para votar no dia das eleições (muitos deles provavelmente pela primeira vez em muitos anos). Foi assim que Trump ganhou, democraticamente, goste-se ou não.
Saindo da bolha de percepção em que estava, vejo hoje claramente para onde estava DonaldTrump a apontar, com um precisão inacreditável. E vejo também o enviesamento cognitivo em que muita gente (eu incluído) estava. A realidade é o que é, não é o que nós queremos que ela seja.
É bom que aceitemos o resultado (democraticamente) e percebamos o que aconteceu e quais as reais causas por detrás desta eleição. Devemos ser auto-críticos, evitar ‘bolhas’ percepcionais e discutir, debater os problemas de frente, não nos encostarmos ao conforto como se estivéssemos no fim da História e nada mais houvesse a fazer. Grande parte dos políticos populistas prometem um retorno a um tempo anterior, conhecido, a um el-dorado civilizacional em que tudo era melhor. E têm sucesso porque as pessoas estão a perder a esperança no futuro, na possibilidade de terem um papel na sua construção e no que há-de vir. É imperativo fazer frente a estas tendências retrógradas, envolvendo toda a gente.
Se se está contra DonaldTrump e as suas políticas, contra populismos e movimentos extremistas, há um bom remédio numa sociedade livre como a nossa: participar, ouvir, discutir, agir, sempre dentro dos princípios de liberdade e tolerância que subjazem a sociedade onde queremos estar.
No nosso caminho civilizacional há (demasiada) gente que está a ficar para trás. E quando demasiada gente fica para trás o resultado não pode ser bom. Basta olhar para a história do século passado, e tentar realmente aprender alguma coisa. É em alturas de maior desigualdade que as maiores barbáries acontecem, que ditaduras ganham vida e se perpetuam.
E pessoalmente, tinha gosto em que nem eu nem os meus filhos tivéssemos de viver uma ditadura ou uma guerra no nosso período de vida.