Geovanni. “Hoje, o Benfica é uma máquina. O meu golo no Dragão mudou a história do clube”

Geovanni. “Hoje, o Benfica é uma máquina. O meu golo no Dragão mudou a história do clube”


Soneca, o homem dos jogos grandes. Foi sua a cabeçada que devolveu a esperança a uma águia há muito adormecida


Há, na história recente do Benfica – e por recente, vamos falar apenas a partir do ano 2000, que é um número redondinho -, uma variedade considerável de golos inesquecíveis, seja pela beleza e qualidade técnica, seja pela sua importância para o clube. Reduzamos a amostra para o período entre 2003 e 2006, só por brincadeira, e aí um nome marca presença de forma insistente: Geovanni. Esse mesmo, o Soneca. Sporting, FC Porto, até o Manchester United se vergou à ambição do homem de Minas, que saiu do Benfica com uma Taça, uma Supertaça e, mais importante que tudo, um campeonato – como havia prometido mal aterrou em Lisboa. Geovanni, o homem que mudou a história do Benfica – dito por ele. Nós rimos, mas depois pensamos melhor… e percebemos que o Soneca tem razão. Toda a razão.

Alô, Geovanni. Tudo bem? Que é feito de si?

Alô. Olha, agora estou como empresário de jogadores, miúdos mais novos. Na faixa dos 17 anos. No Cruzeiro, Baía, América… a ideia é lançar os meninos aqui e mais tarde levá-los para a Europa.

E o Benfica, continua a seguir? 

Sim, na verdade estive em Portugal há uma semana. Nem deu tempo para rever os amigos, porque foi tudo a correr, mas acompanho sempre. Joguei no clube e tenho um carinho muito grande.

Como tem visto a equipa este ano? Vai longe?

Gosto do que vejo, mas prevejo um campeonato complicado. O Sporting manteve a base do ano passado e o FC Porto começou mal, mas agora melhorou bastante. O Benfica também manteve a base e agora está na frente, mas os outros vão dar luta até ao fim. Vai ser um campeonato muito emocionante, muito disputado. Briga até ao fim!

O Sporting já está a sete pontos…

Mas tem o Jorge Jesus, um grande treinador, que fez um grande trabalho no Benfica. Agora está a fazer o mesmo no Sporting, uma equipa que há muito tempo não brigava pelo título. É um treinador de ponta, que surgiu, teve a sua oportunidade e aproveitou-a.

E o Rui Vitória?

Tem um percurso semelhante. Muitos duvidaram dele, vem do Guimarães, né? Mas hoje tem bom prestígio e vai lutar pela conquista do título novamente. Tudo isto mostra o que a Direção tem feito pela continuidade do trabalho. O Benfica está no bom caminho.

Diferente da sua altura?

Não tem nada a ver. O Benfica tem crescido muito nos últimos anos. Hoje é um clube diferente de quando eu cheguei, é uma máquina, tem outro nível. Leva sete anos seguidos na Liga dos Campeões, é uma equipa de enorme potencial. Tal como o FC Porto, que também está sempre lá.

O Luís Filipe Vieira foi agora reeleito.

Tenho uma boa amizade com ele, a gente vai falando. Quando cheguei ao Benfica, ele chamou-me e disse que tinha um grande projecto para o futuro do Benfica: lutar para colocar o Benfica no topo. E a verdade é que hoje o Benfica é outro clube. Na altura, não tínhamos um lugar certo para treinar, era todos os dias num sítio diferente, Odivelas, Massamá…

Outra realidade…

O Benfica é um clube que move Portugal. É o time do povo, com mais adeptos, mais paixão. Tive a felicidade de entrar na sua história, uma história que teve Eusébio, Coluna, Chalana, Mozer, Valdo. Depois Geovanni (risos), Luisão, Nuno Gomes; agora Jonas, Júlio César… No Brasil há muitos portugueses simpatizantes do Benfica, nos estágios que fizemos pela Europa, Luxemburgo, França, Suíça, os estádios sempre lotados em apoio ao Benfica. Isso impressionava-nos muito. O clube ainda vai crescer mais e acredito que dentro de quatro, cinco anos está a lutar pela Liga dos Campeões, a ir às meias-finais e à final. Vai adquirindo essa experiência, quanto mais anos um clube está lá, mais hipóteses tem de ganhar. Se o Valência e o Leverkusen chegaram há uns anos, porque não o Benfica?

E no domingo, no Dragão? O Benfica ganha?

Não é fácil. Os jogos no Dragão são sempre complicados, o FC Porto tem uma grande equipa, também tem um grande gestor, o Pinto da Costa, já há muitos anos no clube. E depois tem adeptos bravos, que empurram o time, dão-lhe vida. O Benfica tem de entrar ligado, porque este vai ser um jogo chave para o resto da época.

O Geovanni só tem as melhores memórias de lá: dois jogos, um empate saboroso com um golo seu e uma vitória…

Cara, o Benfica não empatava no Porto há mais de 11 anos. E não ganhava há 15! Também por isso, fiquei feliz por estar presente e ajudar a quebrar alguns tabus. Esse empate (1-1, em 2004/05) foi mesmo uma vitória para nós. Se perdêssemos esse jogo, de certeza que não éramos campeões. Mas conseguimos o empate e foi um dia marcante. Tínhamos um bom grupo, uma boa equipa, e a partir daí os adeptos começaram a acreditar mais, até a própria comunicação social. A nossa motivação passou a ser maior. Esse dia mudou a história: foi o ponto chave da nova história do Benfica.

 Ainda se lembra do golo?

Como se fosse hoje. Foi um cruzamento, o Nuno Valente estava a marcar-me mas consegui antecipar. Cabeceei para o chão e foi golo. O goleiro (guarda-redes, né?) era o Vítor Baía, um dos melhores da Europa na época.

Na altura, falava-se de um bloqueio emocional nos jogadores do Benfica…

Um clássico é sempre muito importante, o espírito é sempre diferente dos outros jogos. É verdade que essas estatísticas, há não sei quantos anos que não empatamos lá, que não ganhamos, é verdade que isso repercute no jogador. Mas também é verdade que nenhum jogador vai de Lisboa para chegar ao Porto, perder e voltar para casa. A nossa mentalidade era sempre a de dar o máximo e ganhar, éramos muito determinados.

E agora, acredita na vitória?

Espero um grande clássico, com duas equipas que jogam para ganhar. E o Benfica tem sempre uma torcida que vai com a equipa para todo o lado e a faz sempre sentir-se em casa. De certeza que terão grande apoio no Dragão. Como eu gostaria de estar aí e colocar a chuteira…

Era titular neste Benfica?

Era, claro (risos)!

E tirava o lugar a quem?

Isso não sei, mas jogava.

O Salvio tem estado muito bem. Talvez no lugar do Jonas…

É verdade, o Jonas faz muita falta porque é um goleador. Mas estou a gostar do miúdo que tem jogado [Gonçalo Guedes]. O Benfica tem feito um grande trabalho de base, tem miúdos muito interessantes.

Voltemos ao ano do título: como recorda Giovanni Trapattoni?

Era como se fosse um pai. Um senhor humilde, apesar de tudo o que já tinha ganho na carreira. Tinha um coração muito grande. Aprendi muito com ele – aliás, sou um privilegiado, pois fui treinado por alguns dos melhores do mundo. Não só o Trapattoni, mas também o Camacho, o Pepe Carcelén, o Koeman. Mas o Trapattoni foi fundamental, tal como o Camacho. Hoje as pessoas lembram-se pouco do Camacho, mas foi possivelmente o treinador que mudou a história do futebol espanhol.

Porquê?

Foi um revolucionário, deu um pontapé na formação e na estrutura das selecções espanholas. Os treinadores que se seguiram, Del Bosque, Guardiola, Luis Enrique, continuaram o trabalho iniciado por ele. Está para a Espanha como o Mourinho para Portugal. E tinha um caráter muito bom, um amigo, um pai, um companheiro. A mística dele enquadrava-se direitinho no que era pretendido pelo Benfica na altura. Encontrou um time desorganizado e levou a equipa à conquista da Taça. Ele colocava a alma naquilo, se pudesse entrava no campo e jogava com a gente! Aprendi muito com ele.

A minha mãe morreu logo no meu primeiro ano em Portugal. Nessa altura, eu não tinha cabeça para jogar, mas o Camacho levantou-me. Disse-me: “Comigo, você vai jogar!” e deu-me força. Ajudou-me muito.

O Geovanni marcou vários golos especiais em jogos grandes. Era só jogador para esses jogos?

Não. Fiquei com essa reputação e não concordo. Eu gostava muito de dormir depois do almoço, e o Argel estava sempre a brincar comigo por causa disso, a chamar-me Soneca. Então, o nome pegou. A Imprensa é que interpretou de maneira errada e isso foi negativo para mim. Busca aí a estatística desses tais jogos em que diziam que eu não me esforçava e vai ver que tinha melhores números do que muitos dos outros.

É bem provável.

No meu tempo no Benfica, joguei pelo lado direito com Miguel, Armando Sá, Alex, João Pereira. O Miguel foi vendido ao Valência, o Armando Sá para o Villarreal, o Alex para o Wolfsburgo, mais tarde o João Pereira também chegou ao Valência. Todos os que jogaram comigo foram vendidos! Eu coloquei jogadores! Não digo que não tenha havido um ou outro jogo em que não joguei pior… Quando o meu pai morreu, o Benfica impediu-me de ir ao Brasil porque tínhamos um jogo. Eu joguei e marquei o golo decisivo. A minha mãe morreu e eu estava em Portugal; quando o meu filho nasceu estive três dias sem o poder ver, porque estávamos em estágio. Muitas vezes, um jogador tem de mascarar o que está a sentir, mas se joga menos bem, os jornalistas não querem saber disso.

Qual o golo mais especial que fez com a camisola do Benfica? 

Ao Manchester United foi inesquecível, porque muitas pessoas não acreditavam em nós. Tínhamos de ganhar esse jogo, e olha, fui eu e o Beto… Fomos felizes. Nos momentos mais difíceis, Deus entra em cena. Marquei ao Sporting, aquele em Alvalade e noutro jogo para a Taça em que marquei dois golos (3-3, em 2004/05). Por isso, fiquei conhecido como jogador dos jogos grandes. Há dois anos fui ver um jogo à Luz e assisti ao carinho das pessoas. Fiz um grande papel no Benfica: tudo o que fiz foi bem feito.

Esse golo ao Sporting em Alvalade, na altura também soube quase a título…

Foi um grande golo. O meu forte era chutar de longa distância. O Sporting tinha um timaço, Fábio Rochemback, Pedro Barbosa, Liedson, o goleiro era o Ricardo, o Polga zagueiro… O Benfica na altura estava a começar a criar uma identidade: estava adormecido, e aí despertou. Ficámos em segundo nessa época [2003/04] e depois vencemos a Taça ao FC Porto que viria a ganhar a Liga dos Campeões quatro ou cinco dias depois.

Ainda se lembra do que pensou quando surgiu a possibilidade de assinar pelo Benfica?

Tinha três convites: Benfica, Bordéus e Galatasaray. Mas eu tinha jogado contra o Benfica em 1997 e logo aí houve notícias a dizer que o Benfica me queria contratar. Portanto, estive perto logo com 17 anos! E isso fez-me ficar com carinho pelo clube, foi o primeiro clube europeu a interessar-se por mim. Depois, quando surgiu essa possibilidade em 2003, o Camacho falou comigo, fiquei feliz e aceitei logo. Fiquei quatro temporadas e queria ter ficado mais, mas pedi para sair…

Porquê?

Na altura, quis voltar para o Brasil para descansar um pouco, relaxar da pressão do futebol europeu. Queria voltar a casa. Mas às vezes, a pessoa vai com a ideia de que vai encontrar tudo como antes, e chega lá e não é nada assim. O Cruzeiro estava mais desorganizado, não brigava por títulos como antes… Por isso acabei por sair rapidamente para Inglaterra. Se fosse hoje, não tinha saído do Benfica. Quem sabe, não estava ainda hoje no clube! Eu adorava viver em Portugal, em Lisboa. É como se fosse o Brasil para nós: a comida é muito parecida, o clima… a adaptação foi perfeita. Se calhar, ter começado na Europa pelo Benfica e depois passar para o Barcelona tinha sido o ideal em termos de adaptação ao futebol europeu. Quando cheguei ao Benfica já tinha aprendido muito em Espanha. Passei dez anos inesquecíveis na Europa. Hoje, quando aí vamos, temos de passar sempre por Portugal, é uma referência para a gente. Ainda na última vez, fomos visitar a professora de ballet da minha filha.

Continua a falar com colegas dessa altura?

O Luisão é um irmão para mim. Na altura, o Camacho queria um central e eu falei para ele trazer o Luisão, que era um menino mas já mostrava grandes qualidades no Cruzeiro, inclusive de líder. Eu fui o instrumento para ele vir. E hoje, é o jogador com mais jogos na história do clube [estrangeiro e como capitão]. Vai marcar as gerações. É difícil escrever história num clube assim. Também ainda falo com o Nuno Gomes, o Simão, o João Coimbra, um menino fantástico, o Hélio Pinto, de quem sou padrinho de casamento. O Ricardo Rocha, um grande jogador e grande amigo, o Petit… Miguel, Manuel Fernandes, Tiago… todos saíram para clubes grandes da Europa.

O momento mais trágico foi a morte de Fehér, em Guimarães…

Era mais que família. Como se fosse um irmão. Eu nesse jogo não pude jogar. Estava em casa, a ver pela tv. Estávamos muito longe de pensar que uma coisa assim pudesse acontecer. Era um jovem, no início da época tinha passado um montão de exames, estava completamente preparado para a alta competição. Uma coisa assim não tem explicação. O futebol europeu perdeu ali um grande talento. O Fehér era um avançado muito bom, forte, possante, com presença na área, arrastava os defesas. O grupo fortaleceu e o título foi dedicado a ele. A ele e ao miúdo dos juniores a quem aconteceu o mesmo quase na mesma altura… Rui Baião?

Bruno.

Isso. Bruno Baião. Foi uma pena.

Quais os jogadores que mais o marcaram ao longo da carreira?

Romário. Apanhei-o na selecção e não houve igual a ele: o Baixinho era fenomenal. Riquelme, um jogador extraordinário. Ainda há dias estive a ver vídeos dele, a forma como rodopiava com a bola e deixava os adversários para trás… Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Xavi, Iniesta, Cocu, Frank de Boer, Kluivert, o próprio Simão, no Barcelona e depois no Benfica. O Nuno Gomes, que sabia fazer golos como ninguém. Gabriel Paulista, Ricardo Rocha.

Treinadores não vou perguntar novamente, que já me falou bastante de Trapattoni e Camacho.

Mas houve mais. Eriksson, Scolari, Marco Aurélio no Cruzeiro. Phil Brown no Hull, Van Gaal… Só nomes que já tinham deixado a sua marca no futebol, seleccionadores de Brasil, Portugal, Inglaterra, Holanda, Espanha. A ser treinado por nomes destes, eu tinha mesmo de aprender!

Também fez história em Inglaterra!

Fui o marcador do primeiro golo de sempre do Hull na Premier League [vitória por 2-1 sobre o Fulham]. Eles fizeram-me uma homenagem em 2014, até tinham uma música para mim! Foi um clube que ficou acima das minhas expectativas iniciais.

E aquele City [2007/08]? Ainda não tinha nada a ver com o atual…

Pena eu não estar lá agora. Jogava fácil! Com Aguero na frente, David Silva… só jogadores top! Na altura também tínhamos bons jogadores, mas nada como agora. O City entretanto já foi campeão duas vezes, tornou-se numa potência. Mas fiz um golo muito importante, que deu a uma vitória sobre o Manchester United [1-0 à terceira jornada de 2007/08]. Esse golo está imortalizado numa foto à entrada do gramado. Ninguém pode apagar a história, e aí estou eu. Ajudei o City a começar a ser o que é hoje.

E este ano? Não está fácil para o Mourinho…

O Guardiola revolucionou o futebol com os seus métodos. É um treinador de topo, e o City é obviamente um candidato muito forte. Mas há o Tottenham, o Arsenal, o Chelsea, que começou pior mas agora melhorou. O Mourinho vai ter muito trabalho, mas temos de nos lembrar que o Alex Ferguson ficou lá uma vida inteira! Já não vai haver mais Scholes, Giggs… Mas o Mourinho é muito experiente e vai conseguir pôr o United a lutar pelo título nos próximos anos. Este ano não acredito.