Manuais: Distribuição gratuita é inconstitucional

Manuais: Distribuição gratuita é inconstitucional


Gomes Canotilho analisou a lei que permite a distribuição gratuita dos manuais escolares e diz não ter dúvidas de que é inconstitucional. O prestigiado constitucionalista aponta ainda várias falhas na lei.


A distribuição gratuita dos manuais escolares é inconstitucional e a lei desenhada pelo Governo tem várias falhas que podem acentuar a desigualdade social dos alunos.

Quem o diz é um dos mais prestigiados constitucionalistas portugueses, Gomes Canotilho, que não tem dúvidas: «a reutilização dos manuais escolares dificilmente pode ser considerada um fim constitucional ou mesmo um meio constitucionalmente legítimo».

Isto porque, continua o professor catedrático jubilado em Direito, a devolução dos livros no final do ano letivo e os constrangimentos à utilização dos manuais – que têm de ser entregues em «bom estado», sem estarem escritos – «podem afetar negativamente os alunos mais desfavorecidos», que são quem mais depende dos manuais na altura dos exames e das provas nacionais.

É que nessa altura os alunos já não têm acesso aos manuais dos anos anteriores para estudarem para os exames. Sem o acesso aos manuais dos anos anteriores os alunos «podem acabar por ser prejudicados na sua preparação para os exames de fim de ciclo». 

Desta forma, defende Gomes Canotilho, a reutilização dos manuais escolares «não favorece o sucesso escolar, nem a igualdade de oportunidades educativas, não podendo ser deduzida da garantia constitucional do direito à educação». E o constitucionalista deixa um aviso: «Aquilo que se poupa a montante em manuais escolares pode vir a ser pago a jusante na fatura do insucesso escolar e do alargamento da desigualdade».

Esta é apenas uma das conclusões que consta do parecer de 65 páginas – a que o SOL_teve acesso – assinado por Gomes Canotilho e Jónatas Machado que analisa o sistema, desenhado pelo Ministério da Educação, que permite a distribuição gratuita dos manuais escolares para os alunos do 1º ano escolar. 

O constitucionalista sublinha ainda que «para garantir o direito fundamental ao ensino obrigatório a Constituição não exige a gratuitidade dos livros escolares». Basta estar garantida a «acessibilidade, a preços razoáveis» dos manuais escolares. Ao Estado cabe a «intervenção direta» para «evitar que o preço dos livros se torne uma barreira intransponível aos alunos de famílias mais carenciadas».

Em vez da criação de um sistema de reutilização dos manuais escolares, Gomes Canotilho defende que o Estado deve, sim, «empenhar-se no apetrechamento das bibliotecas escolares, na promoção da concorrência do livro digital» ou «na subvenção a famílias carenciadas e numerosas e numa política fiscal favorável à disseminação do livro escolar». 

 

Falhas na lei do Governo

Além desta conclusão, o constitucionalista, que é próximo do PS – foi mandatário da campanha presidencial de Sampaio da Nóvoa, antigo juiz do Tribunal Constitucional indicado pelo PS – tece duras críticas a algumas falhas na lei aplicada pela tutela de Tiago Brandão Rodrigues. 

Uma das lacunas na lei passa pela falta de definição do conceito de livro «em bom estado» e na falta de critérios de como «deve ser aferido» o estado do manual.

A regra desenhada pelo Ministério da Educação prevê que caso os livros não sejam devolvidos no final do ano letivo ou que não sejam devolvidos em «bom estado» é cobrado aos encarregados de educação, que têm de assinar um termo de responsabilidade, a totalidade dos manuais.

E esta é outra das falhas detetadas por Gomes Canotilho. O constitucionalista diz que há «falta de fundamento legal claro e inequívoco» à penalidade cobrada aos pais, caso os livros não sejam devolvidos em «bom estado». E avisa: «Só existe obrigação de indemnizar, independentemente de culpa nos casos especificados na lei». 

O constitucionalista lembra ainda que a lei aprovada no Orçamento do Estado de 2016 – artigo 127º – que prevê a distribuição gratuita dos livros escolares «não estabelece nenhuma responsabilidade objetiva dos encarregados de educação por devolução dos livros em mau estado». 

Outro dos problemas sobre a «penalização» cobrada passa por, lembra Gomes Canotilho, os encarregados de educação não estarem «na sala de aula e em muitos casos não acompanham as crianças no transporte escolar» e, por isso, «dificilmente poderão ter um controlo direto da utilização quotidiana desses manuais» para que se possa cobrar uma sanção «plausível».

E caso se insista na responsabilização dos encarregados de educação, frisa Gomes Canotilho, «muitos dificilmente terão outra alternativa para além de limitar significativamente, ou até impedir» a utilização dos manuais escolares pelos alunos. Solução que «iria claramente contra» a política de gratuitidade dos livros escolares.   

Por tudo isto, remata o especialista, estas regras desenhadas pela tutela de Tiago Brandão Rodrigues levantam «sérias dúvidas sobre a bondade formal e material».

Gomes Canotilho refere ainda que a liberdade editorial é um dos «preceitos constitucionais» e que cabe aos «editores e aos leitores, e não aos poderes públicos» tomar as «decisões fundamentais sobre o quê, o quando e o como da atividade editorial». 

A distribuição gratuita dos manuais escolares arrancou este ano letivo apenas para os 80 mil alunos do 1º ano escolar, da escola pública e privada. No próximo ano, o Governo vai alargar a medida a todos os alunos do 1º ciclo.

Questionado pelo SOL, o Ministério da Educação, que recebeu o documento ontem à hora de almoço, disse apenas que «não conhece o parecer referido».

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