Novo Banco Photo. África deles

Novo Banco Photo. África deles


Félix Mula, Mónica de Miranda e Pauliana Valente Pimentel partilham mais do que geografia. A sua obra joga-nos diretos de queixo ao chão, três realidade perturbadoras, esbeltas, que acabam por convergir


A circunstância, aqui ou na última pedra do pontão, dita as regras. Terra adentro que a erosão é boa conselheira, voz lúcida que vem para enquadrar. Tal qual a de Pedro Lapa, diretor do Museu Coleção Berardo, sempre presente na hora de acolher os jornalistas para a tradicional preview – como o nome indica mais não é que uma visita guiada pelos artistas. Nos costumes ainda mandamos, enquanto Pedro Lapa replica a norma e cerimónia – daqueles que se desejam, livres de champanhe – com que brinda, ou classifica, a abordagem de Félix Mula, Mónica de Miranda e Pauliana Valente Pimentel, os três finalistas do Novo Banco Photo 2016.

Só que desta vez – e lá surge, de novo, a nossa querida circunstância – há algo de desconcertante no piso -1 deste museu, há um livrete de atmosfera tropical, um cheiro a vegetação de meia altura, a querer ser mais que rasteira, os pássaros, ao fundo, feitos marretas agradáveis, um calor estranho que por certo não é frio.

 A culpa é de Mónica de Miranda, artista-porta-de-entrada nesta exposição, que nos atira, e nós sem opção, para uma latitude que sabemos que não é esta. Mais uns passos e reparamos que Félix Mula, fotógrafo moçambicano que se sucede na ordem física da exposição, parece não nos dar descanso, retratos perturbadores de lugares que foram de alguém, fantasmas em ruína trocados por imóveis sem telhado. Ainda há pernas para andar. Seguir que daqui não há retorno e, para o fim, a mesma África através de outra lente, a de Pauliana Valente Pimentel. E aí, nada a fazer, trombose que magoa os olhos, tal é a escuridão, a intimidade perigosa que a fotógrafa nos propõe. Três linguagens que nos atiram, cara e queixo e tudo, para junto do chão. Lugar de perturbação. Lugar onde couberam os três finalistas do Novo Banco Photo 2016.

Recorremos, de novo, a Pedro Lapa, o mesmo que recorda que o Novo Banco Photo “não é um prémio revelação, antes de consagração, reflexo de alguma maturidade dos artistas”. Assim não fosse e entre fotografias de uma pista aeroportuária de ninguém, uma panorâmica de um fim do mundo onde só a aridez vence, entre álbuns de famílias que, com o passar das gerações mudaram de nacionalidade, entre toda esta luta identitária urge um desejo maior de relação com o espetador: “Interessa-me muito explorar essa relação, por isso fiz este género de estúdio, coloquei os bancos para as pessoas poderem contemplar a obra”. Egoísmo parece ser coisa que Mónica de Miranda dispensa, prefere arquivos familiares e o Mindelo, Cabo Verde, como paraíso perdido. “Interessa-me a diáspora, o que é isso de ser de um lugar? Procurar a pertença ou não pertença, fi-lo investigando a genealogia das famílias”, explica.

Sem sair desta África, saímos do arquipélago rumo ao continente. Félix Mula conduz-nos até ao campo moçambicano, nos arrabaldes de Maputo, onde nos permite observar memórias decadentes daquilo a que nós chamamos lojas mas que em Moçambique são cantinas, sítios de conveniência para o que faltar na ruralidade. Um baloiço vazio, um carro cuja vegetação já galgou, que foi deixado a morrer.

Aliás, na obra de Félix Mula tudo parece casa sem telhado, e todos sabemos que nessa casa, ainda que podre, repleta de televisores partidos, já morou alguém. “O meu trabalho é uma forma que arranjo de contar histórias, de ir colecionando objetos, de ir sonhando comigo e, com isso, criar histórias”, conta o artista que procurou os donos destas cantinas em desuso para lhes conhecer, melhor, o corpo, para as retratar com mais critério. “Comecei a ficcionar, tudo através de pessoas que, se calhar, não querem sequer aparecer num vídeo. Embora isto não seja ficção, estive mesmo ali”, confessa.

Apaguem-se as luzes. Não se questione a consonância geográfica – foi só uma curiosidade que Mónica de Miranda e Pauliana Valente Pimentel tenham estado ambas em Cabo Verde, mais ou menos pela mesma altura, e agora aqui se encontrem – e entenda-se que estes retratos, 17 ao todo, mais um vídeo, são fruto de uma lente pouco imediata, que deixa a laranja amadurecer no chão, depois da queda. Foi num bar – que outro lugar pode gerar um enredo destes? – que Pauliana conheceu Stefi, homem-mulher que lhe contou um mito caricato: há um bairro, no Mindelo, onde consta que quem se sentar numa certa pedra torna-se gay. “Descobri um conjunto de jovens que se gostava de vestir de mulher, não quer dizer efetivamente que sejam gays ou transgénero, elas vivem fechadas naquela ilha, não têm dinheiro para sair e, simplesmente, gostam de se vestir assim”, contextualiza a fotógrafa que passou dois períodos com estas jovens, uma primeira vez de três semanas e, depois de saber que era finalista do Novo Banco Photo, voltou para mais duas semanas. Tempo profundamente necessário e que, a pecar por alguma coisa, só se admite que seja por escassez: “Preciso de intimidade no meu trabalho, tive que viver como eles, do dia à noite, para viver o presente, sentir-me como eles”, conta. O vídeo, atrás referenciado, é uma recriação de um desfile de moda num cenário de destruição que nos faz querer ir ficando. No fim o calor passou, mas ainda não virou frio.