A paixão do real


Onde se defende que não matar o pai é normalmente uma ideia acertada, para quem não quer que lhe impinjam os pais dos outros.


Na sua genial última lição, que felizmente não será a final, o prof. Fernando Rosas falou de memória, história, combate e hegemonia. Nem a história nem a memória são terrenos que nos são dados como se fossem gravados na pedra por uma qualquer entidade externa e divina. A nossa memória e a história são palco de um combate contínuo. Não é que a história não tenha acontecido, mas a sua valorização, e até aquilo que dos vários rios da história nós acabamos por levar, está sujeita a uma correlação de forças. De alguma forma, o presente cria o passado, embora o presente seja também produto desse passado. 

Um dos aspetos dessa fabricação da memória de que o historiador falou foi a produção da “desmemória”, a criação pelos media, pela escola, pelos novos produtos informáticos daquilo a que Eric Hobsbawm chamou o “ambiente de presente contínuo”. Escrevia o historiador britânico, na introdução do seu livro “A Era dos Extremos” que “a destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenómenos mais característicos e lúgubres do final do século xx. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso, os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do milénio.

Por esse motivo, porém, eles têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores”.
Na sua lição, o prof. Fernando Rosas assinalou alguns aspetos atuais e atuantes desse trabalho de combater a falta de memória: gerações que não conheçam a luta dos operários do século xix pela jornada de trabalho das oito horas, que custou sangue, suor e lágrimas, estarão menos armadas para contestar a pressão para a degradação contínua das condições de trabalho que a globalização neoliberal exerce sobre as populações do planeta, nomeadamente sobre os trabalhadores dos países de-senvolvidos.

No seu livro sobre o século xx “Le Siècle”, o filósofo Alain Badiou tenta perceber o que foram estes anos. O século xx foi o século do triunfo da economia liberal, o século do mal totalitário ou o século da epopeia comunista? “Como se pode meditar filosoficamente sobre tudo isto? (…) Escolher um tipo de unidade objetiva ou histórica (a epopeia comunista, ou o mal radical, ou a democracia triunfante…) não nos pode servir imediatamente. Já que a questão, para nós filósofos, não é aquilo que se passou no século, mas aquilo que foi pensado. O que é que daquilo que se pensou pelos homens no século não foi simplesmente desenvolvimento de um pensamento anterior? Quais foram esses pensamentos não transmitidos? Que é que se pensou anteriormente de impensado, ou mesmo de impensável?”.

Para o filósofo francês, o famoso “fim das ideologias”, sublinhado pela nossa piedade humanitária, não é mais que a renúncia a toda a novidade da humanidade. Na altura em que os mercados e o capital se apressam a mercantilizar a transformação genética, pretende-se impedir que os homens possam pensar horizontes diferentes para a sua história. “O que apaixonava os sujeitos, os militantes, era a historicidade do homem novo. Porque se estava no momento do começo do real. O século xix anunciou, sonhou, prometeu, o século xx declarou que o ia fazer aqui e agora”, defende Badiou, sublinhando a paixão do real que seria a chave da compreensão do século xx. O real, todos os atores do século o sabem, foi horrível e entusiástico, mortífero e criador.

Nos dias de hoje, das intervenções humanitárias que matam milhões, com drones e aviões, como se estivéssemos num jogo de computador, essa crueldade de meter a mão na massa da carne e do sangue é considerada selvagem.

Quando Fernando Rosas, em entrevista à jornalista Flor Pedroso, afirma que “o PCP ainda não matou o pai. E o pai é a União Soviética”, colabora, em meu entender, na política de desmemorização que de uma forma notável denunciou na sua última lição. A fidelidade do PCP ao momento da Revolução de Outubro, com todas as suas consequências, não é nada de negativo.

Pede-se a um partido comunista que continue a acreditar e a lutar para que a história possa ser mudada, e para isso não é possível negar um passado, uma filiação, uma herança e uma fidelidade. Não quer dizer que não se aprenda com os erros de uma história. Ao contrário das maçãs envolvidas na lei da gravidade de Newton, os humanos têm a possibilidade de ler e refletir sobre aquilo que aconteceu, e tentar não repetir os mesmos falhanços. Mas isso não pode implicar a negação do lado de que se estaria em todo esse tempo que passou. Ser fiel a um lado implica aceitar toda a sua herança, mesmo que seja para a não repetir.

E é preciso lembrar que a história que hoje temos é feita por vencedores que a embelezam e lhe dão tons negros à sua vontade. Esses vencedores não são aqueles que veem a Revolução de Outubro como um passo de gigante contra as impossibilidades. Só quem for fiel à ideia de uma rutura e revolução poderá ser sujeito nesse acontecimento, sem o qual dificilmente haverá mudança.

 


A paixão do real


Onde se defende que não matar o pai é normalmente uma ideia acertada, para quem não quer que lhe impinjam os pais dos outros.


Na sua genial última lição, que felizmente não será a final, o prof. Fernando Rosas falou de memória, história, combate e hegemonia. Nem a história nem a memória são terrenos que nos são dados como se fossem gravados na pedra por uma qualquer entidade externa e divina. A nossa memória e a história são palco de um combate contínuo. Não é que a história não tenha acontecido, mas a sua valorização, e até aquilo que dos vários rios da história nós acabamos por levar, está sujeita a uma correlação de forças. De alguma forma, o presente cria o passado, embora o presente seja também produto desse passado. 

Um dos aspetos dessa fabricação da memória de que o historiador falou foi a produção da “desmemória”, a criação pelos media, pela escola, pelos novos produtos informáticos daquilo a que Eric Hobsbawm chamou o “ambiente de presente contínuo”. Escrevia o historiador britânico, na introdução do seu livro “A Era dos Extremos” que “a destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam a nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenómenos mais característicos e lúgubres do final do século xx. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso, os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do milénio.

Por esse motivo, porém, eles têm de ser mais que simples cronistas, memorialistas e compiladores”.
Na sua lição, o prof. Fernando Rosas assinalou alguns aspetos atuais e atuantes desse trabalho de combater a falta de memória: gerações que não conheçam a luta dos operários do século xix pela jornada de trabalho das oito horas, que custou sangue, suor e lágrimas, estarão menos armadas para contestar a pressão para a degradação contínua das condições de trabalho que a globalização neoliberal exerce sobre as populações do planeta, nomeadamente sobre os trabalhadores dos países de-senvolvidos.

No seu livro sobre o século xx “Le Siècle”, o filósofo Alain Badiou tenta perceber o que foram estes anos. O século xx foi o século do triunfo da economia liberal, o século do mal totalitário ou o século da epopeia comunista? “Como se pode meditar filosoficamente sobre tudo isto? (…) Escolher um tipo de unidade objetiva ou histórica (a epopeia comunista, ou o mal radical, ou a democracia triunfante…) não nos pode servir imediatamente. Já que a questão, para nós filósofos, não é aquilo que se passou no século, mas aquilo que foi pensado. O que é que daquilo que se pensou pelos homens no século não foi simplesmente desenvolvimento de um pensamento anterior? Quais foram esses pensamentos não transmitidos? Que é que se pensou anteriormente de impensado, ou mesmo de impensável?”.

Para o filósofo francês, o famoso “fim das ideologias”, sublinhado pela nossa piedade humanitária, não é mais que a renúncia a toda a novidade da humanidade. Na altura em que os mercados e o capital se apressam a mercantilizar a transformação genética, pretende-se impedir que os homens possam pensar horizontes diferentes para a sua história. “O que apaixonava os sujeitos, os militantes, era a historicidade do homem novo. Porque se estava no momento do começo do real. O século xix anunciou, sonhou, prometeu, o século xx declarou que o ia fazer aqui e agora”, defende Badiou, sublinhando a paixão do real que seria a chave da compreensão do século xx. O real, todos os atores do século o sabem, foi horrível e entusiástico, mortífero e criador.

Nos dias de hoje, das intervenções humanitárias que matam milhões, com drones e aviões, como se estivéssemos num jogo de computador, essa crueldade de meter a mão na massa da carne e do sangue é considerada selvagem.

Quando Fernando Rosas, em entrevista à jornalista Flor Pedroso, afirma que “o PCP ainda não matou o pai. E o pai é a União Soviética”, colabora, em meu entender, na política de desmemorização que de uma forma notável denunciou na sua última lição. A fidelidade do PCP ao momento da Revolução de Outubro, com todas as suas consequências, não é nada de negativo.

Pede-se a um partido comunista que continue a acreditar e a lutar para que a história possa ser mudada, e para isso não é possível negar um passado, uma filiação, uma herança e uma fidelidade. Não quer dizer que não se aprenda com os erros de uma história. Ao contrário das maçãs envolvidas na lei da gravidade de Newton, os humanos têm a possibilidade de ler e refletir sobre aquilo que aconteceu, e tentar não repetir os mesmos falhanços. Mas isso não pode implicar a negação do lado de que se estaria em todo esse tempo que passou. Ser fiel a um lado implica aceitar toda a sua herança, mesmo que seja para a não repetir.

E é preciso lembrar que a história que hoje temos é feita por vencedores que a embelezam e lhe dão tons negros à sua vontade. Esses vencedores não são aqueles que veem a Revolução de Outubro como um passo de gigante contra as impossibilidades. Só quem for fiel à ideia de uma rutura e revolução poderá ser sujeito nesse acontecimento, sem o qual dificilmente haverá mudança.