Na manhã de 13 de março, dois biólogos do ICNF, Pedro Sarmento e Pedro Gomes, partiram em busca de Kayak, para a observarem novamente. Antes de se fazerem ao terreno, pelas 6h58, verificaram o sinal da coleira GPS, que lhes indicou a localização: um pinhal junto à povoação de Alvares, inserido numa propriedade chamada “Cerro das Camarinhas” e situada na reserva de caça de Olva, a apenas 160 metros do sítio onde tinha sido fotografada horas antes.
Demoraram 17 minutos a chegar, mas encontraram Kayak deitada no chão, sobre o lado esquerdo, morta e “num estado de salivação evidente”. O “Protocolo de atuação de emergência para situações de morbilidade” do ICNF foi imediatamente ativado: informou-se o coordenador da reintrodução dos linces, Pedro Rocha; chamou-se a equipa do SEPNA da GNR de Almodôvar e telefonou-se à veterinária municipal de Mértola.
No “Relatório técnico de inspeção ocular” da GNR, anexado à investigação, ficou escrito que Kayak “não apresentava sinais de perfurações nem feridas” ou “sinais de magreza ou debilitação física”. O corpo ainda não estava com rigidez cadavérica, apesar de já estar frio, e a lince tinha“expressão de riso e espuma e pelo em redor da boca”. Sinais que indiciavam “morte por envenenamento”. Até porque, escreveram os militares da GNR, “nada fazia acreditar que um animal de dois anos, bastante monitorizado, com bastante saúde e robustez, aparecesse morto sem causa aparente”. Pouco depois de chegar ao local, a veterinária municipal, Maria Eugénia Alho, confirmava o óbito, informando que deveria ter ocorrido por volta das cinco da manhã.
O cadáver de Kayak ficou sob custódia da GNR de Beja e foi levado para a Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de Lisboa, para ser autopsiado. A investigação foi entretanto entregue à GNR de Almodôvar, liderada pelo cabo José Lopes, do SEPNA local. Em causa poderia estar um crime de dano contra a natureza, punível com pena de prisão até cinco anos.
Dez dias depois do misterioso envenenamento, o responsável pela Quercus do Alentejo recebia uma denúncia anónima e perturbadora. Um desconhecido foi ao encontro de José Paulo Martins e pôs-lhe uma carta nas mãos, enquanto lhe pedia sigilo e lhe perguntava se queria “informações sobre o caso da morte do lince”.
Ouvido durante a investigação, o ambientalista contou que o homem parecia assustado: talvez tivesse alguma relação com as pessoas que acabara de denunciar. Ou talvez vivesse na mesma zona do que elas. Fosse como fosse, passou a informação ao diretor do ICNF do Alentejo, responsável pela reintrodução dos linces. Seria Pedro Rocha a comunicar a denúncia anónima ao Ministério Público de Beja, por email e indicando o nome dos suspeitos visados na carta manuscrita: M. P., morador na aldeia de Alcaria Ruiva, e Carlos M., ligado à associação de caça “Lapa dos Morcegos”. O anónimo garantia que os tinha ouvido conversar sobre um alegado plano para eliminar os linces libertados pelo ICNF.
MUITOS CAÇADORES SÃO CONTRA A REINTRODUÇÃO DA ESPÉCIE, POR TEMEREM FICAR SEM PRESAS PARA CAÇAR, SOBRETUDO COELHOS
O arquivamento foi, no entanto, decidido sem que se tenha esperado por exames que, mais à frente, viriam a ser muito discutidos. É que, perto do cadáver de Kayak, foram descobertos os cadáveres de uma galinha e de uma fuinha, em avançado estado de decomposição. Um mês a seguir ao envenenamento, a GNR, o ICNF e uma equipa canina espanhola, especialista na deteção de venenos, regressaram ao local onde a lince tinha aparecido morta.
E, segundo se lê no relatórios dos trabalhos dessa manhã, a “cadela Cyndy” encontrou os restos mortais da galinha e o “cão Kalanda” os da fuinha. Um e outro “deram sinal” aos treinadores de que os cadáveres estavam envenenados. A galinha e a fuinha foram recolhidas, mas tardaram a ser analisada, apesar da insistência do tribunal.
Só que, no debate instrutório do processo, a 14 de março de 2017, a juíza achou que, afinal, podia não ser relevante mandar autopsiar os animais. “Embora tenha resultado dos depoimentos prestados que [a morte da fuinha e da galinha] terá sido por envenenamento, importa atender a que foram encontrados mais de um mês após a morte do lince e, nessa medida, não é possível estabelecer uma ligação entre a morte deles e a morte do lince”, considerou a magistrada, perante a insistência da advogada da LPN na realização dos exames.
Já o advogado de “Os Lavradores” discordou que as autópsias fossem feitas. “Não acho assim tão relevante”, justificou. No mesmo debate instrutório, uma das testemunhas, Carlos Carrapato, biólogo do ICNF, revelou que as análises tinham esbarrado numa espécie de amuo entre a GNR e o instituto. “A fuinha e a galinha estão numa arca, congeladas, em Mértola. Há dois anos, informei a minha tutela que o material tinha sido recolhido, mas disseram-me que estavam a ver isso com a GNR... quem faria a análise... porque a GNR quis tutelar todo o processo, até porque era um processo mediático. Eu julgo que pode ter havido aqui algum empurrar de responsabilidades entre o ICNF e a GNR para se fazer as análises. Até porque não fazia sentido o ICNF mandar analisar a fuinha e a galinha num laboratório e a GNR ter mandado analisar o gato [lince] noutro laboratório. Neste jogo do empurra, os animais ainda estão dentro da arca”, confessou o biólogo.
Também no debate instrutório, os responsáveis da associação “Os Lavradores” recusaram responsabilidades na morte de Kayak e acusaram o ICNF de não os ter avisado que o lince andava pela zona. Quanto aos donos do pinhal, também garantiram que não sabiam das reintroduções dos animais. Sobre o dever de vigiarem a área, Joaquim Beijinha e José Maria Seromenho explicaram que têm vigilantes contratados que fazem rondas, só que os donos do pinhal tinham-se comprometido a vigiar os próprios terrenos. Por sua vez, Luís e João Alves (pai e filho) contaram à juíza que, na semana em que o lince morreu, não puderam fazer as rondas porque estavam os dois doentes e tinham ido para Beja.
A história seria, no entanto, desmentida pelo biólogo Carlos Carrapatoso, que contou ao tribunal que, a seguir à morte de Kayak, se deslocou a Alvares e perguntou pelos donos do pinhal, tendo conseguido falar com eles. O funcionário do ICNF garantiu ainda que os vizinhos de Luís Alves e João Alves lhe terão confidenciado que pai e filho “não eram favoráveis” à presença de linces e que estavam em Alvares nos dias que antecederam a morte. Também segundo a versão de Carlos Carrapatoso, “toda a gente sabia”, nas aldeias da região, que havia “gatos” soltos. A juíza marcou a leitura de decisão instrutória para o dia 3 de abril de 2017.
Uma semana depois do debate instrutório, em que o Ministério Público e o advogado de “Os Lavradores” defenderam que os dois arguidos não deveriam ser acusados nem ir a julgamento, o presidente do ICNF escreveu ao tribunal para informar que tinha, finalmente, “condições para contratualizar a realização dos exames” da galinha e da fuinha à Faculdade de Medicina de Lisboa - onde Kayak também tinha sido autopsiada. Rogério Rodrigues considerava, na carta, que os testes toxicológicos poderiam “fornecer informação pertinente à resolução do processo” e anunciava que os resultados seriam “oportunamente juntos ao processo”.
Antes de chegarem, foi lida a decisão instrutória. A 3 de abril de 2017, o Tribunal de Beja decidiu não levar ninguém a julgamento pelo envenenamento de Kayak, voltando a arquivar o caso. A juíza justificou a decisão com o facto de reserva de caça ter um vigilante, que só não passava a pente fino a zona em que a lince apareceu morta porque os donos do terreno se tinham comprometido a ser eles a vigiar o terreno.
Estes, no entanto, continuou a juíza, “não estavam diariamente na propriedade, por estarem doentes e viverem em Beja, facto que os sócios de ‘Os Lavradores’ desconheciam”. Para a magistrada não ficou sequer provado que Kayak tenha ingerido o veneno dentro da zona de caça, “apenas se podendo afirmar que aí veio a morrer”. E rematou: “Não se vislumbra que se encontre minimamente indiciado que os arguidos tenham omitido qualquer lei, regulamento ou obrigação”. Caso encerrado.
Dez dias depois, a 13 de abril de 2017, chegavam ao Tribunal de Beja os resultados das autópsias à fuinha e à galinha, via ICNF. O resultado? “Não foi possível a realização das necropsias, face ao avançado estado de degradação dos espécimes e, consequentemente, à ausência de material para análise”.