TEXTOS | MARTA REIS
FOTOGRAFIA | MIGUEL SILVA
Mamadou nunca andou de metro e mantém-se perto do pai. Afonso não tem tido vontade de sair de casa a não ser quando é mesmo preciso. Inês quer ser modelo e assim parece, alta e elegante nos seus 15 anos. Gonçalo é o mais novo e também está curioso com a experiência.
É uma sexta-feira diferente para o projeto Desenhar Contigo, que há um ano e meio anima os finais de semana das crianças e adolescentes em tratamento no Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa. O resultado da visita ao metro pode vir a fazer parte de uma exposição nas estações mais próximas do instituto, Praça de Espanha e Jardim Zoológico, mas, por agora, o objetivo não é muito diferente daquele que move a iniciativa há ano e meio: levar as crianças a observar o que as rodeia, deixar fluir a imaginação e desenhar, tentando esquecer por alguns momentos as dores dos tratamentos, as maldades da doença. Dar um pouco de normalidade às crianças e aos pais, que os acompanham dia a dia nas idas ao hospital e também neste passeio.
Teresa Ruivo, de 53 anos, a mentora do projeto, conhece hoje bem os talentos deste grupo e de muitas outras crianças e jovens seguidos no IPO. Durante algum tempo pensou em encontrar um projeto de voluntariado e os astros acabaram por alinhar-se em 2016. Participou num encontro de Urban Sketchers organizado no instituto e acabou por ter uma ideia: porque não pôr os desenhos ao serviço das famílias? Desde então, todas as sextas-feiras, por vezes a partir das 8h, instala-se no Pavilhão Lions, onde funciona uma espécie de sala de espera/ATL do hospital. E depois é ficar à espera que apareçam os aprendizes.
“Às vezes pedem para marcar os exames para a sexta-feira para virem desenhar”, sorri Teresa. Os desenhos entraram na vida da psicóloga clínica há não muito mais tempo e hoje é hábil com as aguarelas e com o pincel com um pequeno depósito de água, ideal para os “desenhadores urbanos”, que em qualquer sítio sacam dos seus cadernos para registarem a realidade. “Se alguém me dissesse há cinco anos que ia parar em algum lado, sentar-me no meio do chão e desenhar, diria que estavam malucos.”
Na incursão pelo metro, os pais acompanham os filhos e também ensaiam uns traços nos cadernos. “Com a Teresa, toda a gente desenha”, avisam-nos ainda antes de sair do IPO para o passeio.
A primeira paragem é a estação de Marquês de Pombal, onde o desafio é desenhar as figuras que ilustram as paredes. O dito marquês, Goethe, Eugénio dos Santos, Carlos Mardel. Inês, concentrada com o seu caderno, vai replicando no papel as ilustrações do azulejo. É da Guiné-Bissau e estão há um ano em Lisboa, conta a mãe, emocionada com os dotes da filha. Vivem no lar do IPO e o futuro é incerto, por tudo um pouco. O tratamento ainda está para durar e Inês tem um sarcoma, um cancro ósseo: os médicos já lhe disseram que não é aconselhável viver num clima quente. “Se calhar, não pode voltar para África, tem de ficar cá.” Genabu tem outros três filhos, o mais novo de cinco anos. Ficaram todos em Bissau e não os vê desde março do ano passado. Não teria como pagar viagens regulares e “primeiro está a saúde da Inês”.
Também de Bissau é Mamadou, de 10 anos. Chegou em novembro, com o pai.
De poucas palavras, os olhos curiosos captam os pássaros já na parede da estação de Sete Rios e sorriem com a primeira aventura no metro. “Metro na Guiné? Nem metro, nem comboio, nem autocarro!”, sorri Genabu, que se tornou amiga desta família.
Carla, mãe de Afonso, também está deslocada desde que o filho começou, há sete meses, os tratamentos. Faltam 18 meses de protocolo, palavras que depressa entram no vocabulário. São da Terceira e está a viver com o marido e o filho num apartamento em Benfica. Desde que a vida mudou tem sido complicado gerir tudo, mas o que importa é que os tratamentos estão a correr bem. Afonso, de 13 anos, tem tido aulas por Skype com os colegas dos Açores, uma boa ajuda da escola, conta Carla. De resto, tem a internet e os videojogos, tudo normal para um adolescente. Sair de casa é que não tem sido tanto com ele; por isso, um simples passeio no metro já é o suficiente para a mãe ficar com algum alento.
Mafalda, mãe de Gonçalo, partilha o mesmo. São de Torres Vedras e vêm ao IPO para os tratamentos, mas Gonçalo pode continuar na escola. Desenha as composições do metro e vai mostrar o resultado a Teresa, que em gestos rápidos vai captando o ambiente e as pessoas que entram e saem das carruagens. Teresa sugere-lhe que desenhe os passageiros. “Ia vazia!”, exclama o rapaz de nove anos, com o caderno já com muitos desenhos. “Às vezes temos de ser criativos”, devolve a “professora”. Como qualquer criança, Gonçalo sabe sê-lo: “Vou desenhar macacos.”
Luana, oito anos, vai ter à gare com a mãe e uma voluntária do IPO. É dos que mais gostam de desenhar e não podia faltar à visita de estudo. Gosta sobretudo de desenhar pessoas e os olhos fixam--se numa mulher africana do outro lado da plataforma, com vestes tradicionais em tons fortes, que instantes antes prenderam a atenção de Teresa Ruivo. Desenham-na as duas, ao seu jeito.
É nesta capacidade para detetar pormenores que possivelmente passariam despercebidos se não andassem de caderno na mão que Teresa vê uma das grandes dádivas da arte de urban sketching e é isso também que tenta passar aos mais novos. Se os desenhos lhe deram mundo, com as crianças e com o IPO percebeu ainda mais como é importante relativizar os pequenos problemas do dia-a-dia. “Ao lado do que eles passam, são migalhas, e às vezes focamo-nos nas pequenas coisas más que nos acontecem sem darmos valor às boas.”
Maria Miranda, educadora de infância do IPO há 16 anos, acolheu de bom grado o projeto de desenho e acredita que a constância de Teresa contribui muito para o sucesso. Todos os anos chegam ao IPO 160 novos casos de cancro em idade pediátrica e estão em acompanhamento cerca de 400 crianças e adolescentes. No Pavilhão Lions, o grande foco é que o tempo que têm de passar no hospital seja o mais agradável possível. “É fazê-los entenderem que não vêm ao hospital só para os tratamentos, pode ser um espaço de brincadeira”, resume Maria, que, tal como Teresa, sente que lidar com as famílias mudou a forma como leva a vida. “A nossa vida pode ser complicada, mas não tem nada a ver. Penso nisso, por exemplo, ao domingo, quando saio de casa para ir tomar um café, são coisas simples que, muitas vezes, as famílias deixam de conseguir fazer.”