Os médicos que trabalham para o Serviço Nacional de Saúde deviam fazê-lo em regime de exclusividade?
Sim. Acho que não se deve mexer nos médicos que já têm atividade privada. É começar pelos mais novos. Qualquer pessoa contratada pelo Serviço Nacional de Saúde deveria trabalhar só em dedicação exclusiva - e deviam ser bem pagos por isso. Fala-se muito nas horas: a reforma da saúde passa por um equilíbrio de vários fatores. Tem de se pagar às pessoas pelas horas que trabalham, mas também por aquilo que fazem, pela complexidade daquilo que fazem, pelo número de doentes que veem, pela dedicação que têm. Temos de ter um serviço público de saúde gerido de modos modernos e isso só é possível apostando nas pessoas que trabalham na função pública. E o que estou a dizer para a saúde devia valer para tudo. Não é possível nem aconselhável fazer isto de um dia para o outro. Agora, é possível começar com os novos. E os novos contratos deviam ter essa condição e não têm, pelo contrário. Os jovens médicos não têm a perspetiva de ter exclusividade. Assim é impossível. Como são mal pagos, vão trabalhar em dois ou três sítios. Isso passa-se com médicos, com enfermeiros...
Mas dentro da classe médica a ideia de exclusividade não é popular...
Não é nada popular. É uma das razões por que eu perdi as eleições [para bastonário da Ordem dos Médicos] há dois anos. (risos)
Mas um governo apoiado pela esquerda não devia ter começado a pensar nisso?
Eu sempre defendi, quando tinha responsabilidades no PS e, agora, no mandato de António Costa, que o Partido Socialista devia fazer entendimentos com o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda em duas áreas em que é fácil o entendimento à esquerda: na saúde e na educação. Europa, política externa e NATO, é impossível. Na economia, também é difícil. Mas para garantir serviços públicos de saúde e educação de qualidade para todos, com igual qualidade para todos, é possível o entendimento.
E isso significa tirar também a educação dos privados?
Não. Significa estabelecer qual é o lugar para cada um e não se misturarem. Exemplos: a saúde tem três pilares fundamentais - cuidados primários, hospitalares e continuados. Este terceiro pilar é cada vez mais importante porque vivemos cada vez mais anos e precisamos de mais apoio médico e de enfermagem. Por exemplo, a área dos cuidados continuados podia ser para o setor social e para o setor privado. As Misericórdias têm experiência nessa área. Mas agora as Misericórdias estão também na área dos hospitais? Pronto, entraram, é a vida. Mas há aqui uma certa confusão. Os melhores hospitais do país, onde existem os melhores cuidados de saúde de cirurgia cardíaca, oncologia, neurocirurgia, são hospitais públicos. Estamos a falar de hospitais centrais e universitários. Para que todos sejamos bem atendidos no futuro - estou a falar a 50 anos - é bom preservar o SNS público, nomeadamente na área hospitalar e nos cuidados primários.
Se você, que é da ala direita do PS, defende a lei Arnaut-Semedo, porque é que a herança deles não poderá ser acolhida?
Eu sou um socialista liberal. O PS vai apresentar uma proposta de lei e eu defenderei essa proposta, que ainda está a ser estudada por uma comissão liderada por Maria de Belém.
Maria de Belém tem bastantes relações com os privados...
Sim, mas foi uma ótima ministra da Saúde, é uma das pessoas mais qualificadas e que melhor conhece o sistema e é uma mulher de esquerda. Confio na sua inteligência e penso que irá beber muitas das preocupações da lei Arnaut-Semedo.
Acredita mesmo que a nova lei de bases da saúde terá grande inspiração de Arnaut e Semedo?
Acho que vai ter. O PS tem grande inspiração em António Arnaut, como é óbvio. E outra coisa não seria de esperar, está no nosso código genético. E até Rui Rio tem algumas declarações que se aproximam desta posição. Já chegou a dizer, e bem, que a saúde não é um negócio como os outros. A saúde não está feita para ter lucro, existe para tratar pessoas. Mesmo a atividade privada em saúde tem de ter uma ética diferente das outras. O problema é que em Portugal temos dois sistemas dentro do sistema. Uma parte da Europa tem um sistema bismarckiano - Holanda, Alemanha, França - de seguros de saúde e depois o Estado cobre quem não tem seguro. Inglaterra, Portugal e Espanha têm o serviço nacional de saúde, que é público e universal. Mas em Portugal coexistem os dois sistemas: 60% de Serviço Nacional de Saúde, pago pelos nossos impostos, e depois 40% de seguros de saúde - além de pagarmos todos impostos para ter o SNS, alguns ainda pagam para seguros de saúde, sejam públicos ou privados. Os funcionários públicos descontam para a ADSE, que é um seguro de saúde público, e outros têm seguros privados. Em Portugal, muitos cidadãos pagam duas vezes. Há uma duplicação e isto cria um sistema pantanoso. E, depois, grande parte ou a maioria dos médicos trabalham nos dois sistemas! Isto é confuso. Muito confuso. Pôr ordem nisto não é fácil.
O governo Sócrates, no passado, tentou acabar com as “caixas”. Mas parece que só acabou com a Caixa dos Jornalistas...
As caixas e a ADSE foram criadas pelo Salazar nos anos 60 porque não havia um Serviço Nacional de Saúde! Quando o Arnaut fez o decreto-lei do SNS, já no fim do mandato dele, a ideia a seguir era acabar com as caixas. Em Inglaterra não há caixas, não há ADSE’s, como é óbvio! Quando se cria um Serviço Nacional de Saúde universal e gratuito é para todos, todos são iguais. Todo o cidadão de uma República é igual em direitos e deveres e deve ter o direito de ser tratado da mesma maneira. Eu já disse isto dentro do PS: a escola pública é obra da i República e cumpre o princípio de que o filho do rico e o filho do pobre têm direito à mesma professora de Matemática, o que é um avanço civilizacional. E até vestiam a mesma farda, para não se distinguirem pela roupa. A escola pública dá igualdade de oportunidades para que exista o elevador social, para que todos tenham oportunidade de chegar ao topo. Depois do 25 de Abril, o governo PS com António Arnaut deu-nos o serviço nacional de saúde inglês, criado em Inglaterra depois da ii Guerra Mundial pelos trabalhistas. E, no SNS, o princípio é que o rico ou o pobre tenham direito ao mesmo tratamento na saúde. Quando se criou o SNS, a ideia era acabar com as caixas, que são sistemas privados ou públicos, no caso da ADSE, apenas para alguns membros. Antes, aqueles membros eram privilegiados, todos os outros não tinham nada. Antes do SNS havia milhões de portugueses que não tinham direito à saúde. Em Portugal fez-se o SNS e manteve-se o sistema de caixas e a ADSE, e cresceram os seguros privados de saúde. E aqui temos a confusão e isto é uma verdade sobre a qual ninguém quer falar, que dói.