O último dos 4Cs
Há cada vez maior evidência que a criatividade é uma competência que pode ser desenvolvida tanto fora como dentro do ambiente escolar.
Num encontro recente do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e de Computadores do Técnico, tivemos como convidado o Prof. João Hespanha, do departamento homólogo da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara (UCSB). Lá, como cá, reflete-se sobre o que deve ser a formação de um diplomado nesta área e quais as competências essenciais que deve ter. A crescente importância da energia elétrica e os desafios da sua distribuição, a necessidade de trazer de volta ao ocidente a produção de circuitos eletrónicos, a sensorização do ambiente e os desafios da transmissão, armazenamento e processamento desse manancial dados, a ligação entre a robótica e a aprendizagem automática são alguns dos temas atuais a que um diplomado desta área deve poder dar o seu contributo. Com toda esta diversidade, que competências básicas devem ter em comum estes diplomados? As reuniões entre académicos para procurar uma resposta deram o resultado esperado: todas as matérias que lecionam são as mais importantes.
Esta reflexão recordou-me o consórcio, conhecido como P21, que reuniu líderes educativos, agências governamentais americanas como o departamento de educação dos Estados Unidos da América, e empresas como a Apple e a Microsoft. O consórcio Partnership for 21st Century Skills reconheceu a profunda diferença entre o conhecimento e as competências que a maioria dos estudantes aprende na escola e o conhecimento e competências necessárias nos locais de trabalho no século XXI. Num dos estudos que promoveu, foram identificadas 4 competências que ficaram conhecidas por 4Cs: pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade. O consórcio defendeu o alinhamento do desenvolvimento destas competências através da fusão com as tradicionais competências da leitura, escrita e matemática.
A competência da criatividade será talvez a mais curiosa e a mais útil para o leitor. A definição mais comum entre especialistas é que a criatividade é a capacidade de produzir algo novo e útil. De acordo com o livro The Cult of Creativity, de Samuel Franklin, é um termo que surgiu apenas em meados do século XX, sendo mais abrangente que termos mais antigos como a inventividade, originalidade, imaginação ou fantasia. Para além do consórcio P21, também o World Economic Forum declarou em 2020 que a criatividade é a competência que melhor resistirá à evolução do mercado de trabalho. Outra medida da importância da criatividade é o vídeo mais visto de sempre das conferências TED: “Será que as escolas matam a criatividade?”.
Há cada vez maior evidência que a criatividade é uma competência que pode ser desenvolvida tanto fora como dentro do ambiente escolar. No livro O Caminho do Artista, Julia Cameron descreve um programa de 12 passos com o objetivo de libertar o espírito criativo que a autora considera que todos possuímos. Uma das ferramentas criativas propostas no livro é a escrita de “páginas matinais”. Trata-se da escrita ininterrupta de 3 páginas de texto com os pensamentos que vão ocorrendo durante a escrita sem fazer correções ou paragens para pensar. Podem servir para fazer o registo do passado recente, tal como num diário, ou para documentar preocupações ou tarefas pendentes ou ainda como forma de analisar possíveis soluções para problemas que enfrentamos. Fazendo o registo das preocupações e dos problemas do dia-a-dia, as páginas matinais deixam a mente disponível para a criatividade. Têm, também, a vantagem de silenciarem o nosso censor interior que nos obriga ao perfecionismo e nos questiona sobre a razoabilidade das nossas ideias. A escrita ininterrupta deve registar todas ideias que nos passam pela cabeça, mesmo que mal formuladas ou irrealistas. Tal como uma sessão de brainstorming, é uma forma de desenvolver o pensamento divergente que está na base do processo criativo onde são geradas muitas ideias para serem selecionadas na fase de pensamento convergente que se seguirá. As páginas matinais são uma experiência individual pois devem apenas ser lidas pelo seu autor. Nas minhas aulas, onde cada equipa está na sua mesa, uso uma versão modificada em que peço a cada estudante que escreva numa página em branco um parágrafo sobre uma solução para o problema atribuído à sua equipa. Seguidamente, as folhas rodam entre os membros da equipa e cada um junta um parágrafo à folha que recebeu. O processo repete-se até cada folha ter tantos parágrafos quanto o número de membros da equipa. Só depois disso é que a equipa discute as ideias para escolher a solução que parece mais promissora para o seu problema.
A inclusão dos 4Cs é mais um desafio no desenho de um curriculum que pretenda incluir as competências básicas necessárias a um diplomado em engenharia. O João Hespanha apresentou-nos a abordagem seguida na UCSB: o programa académico inicia-se com um projeto de engenharia realizado em equipa que dá ao estudante uma experiência criativa. A partir daí, o currículo é completamente flexível, tendo cada estudante a liberdade de escolher as unidades curriculares que pretende frequentar. Um professor tutor assegura que tem as bases necessárias para as suas escolhas. O programa termina com um projeto integrador, também em equipa, que demonstra a criatividade e a capacidade de integração dos conhecimentos adquiridos. Tal como a diversidade de ideias é importante na primeira fase do processo criativo, também a diversidade curricular dos diplomados permitirá dar resposta a necessidades do mercado de trabalho cada vez mais diferenciadas.
Professor do Instituto Superior Técnico