
O Ministério da Saúde tem de tal forma consciência do impacto da inflação que aumentou significativamente os termos da contratualização interna. Mas, inexplicavelmente, não refletiu esse efeito na contratualização externa. Os valores das convenções não tiveram qualquer atualização.
Entrei na Faculdade de Economia do Porto em 1987. Lembro-me de que o primeiro choque para muitos dos caloiros foi o manual de matemática financeira do prof. Miguel Cadilhe. Foi remédio santo para enraizar a ideia de que o tempo é uma variável da maior importância e que, por vezes, é difícil calcular o valor atual da perpetualidade.
Parece talvez um pouco estranho, mas revisitei estas memórias a pensar nalgumas questões do Sistema de Saúde. A primeira, induzida pela minha costela de economista, tem a ver com o financiamento do SNS — aliás, para ser mais exato, sub-financiamento do SNS, já que para 2023 faltam assumidamente e à partida 500 milhões de euros. Alguns advogam que não há aqui problema nenhum, porque o dinheiro acaba sempre por aparecer, ainda que por injeções de milhares de milhões de euros em dezembro, no finalzinho do ano, uma espécie de “fantasma dos natais passados” que continua a assombrar os hospitais EPE.
Esta leitura benigna falha e não compreende o básico: se o orçamento nasce incorreto, ele não pode ser cumprido logo desde o momento em que começa a ser executado. Ora bem, isto desresponsabiliza os gestores, não deixa qualquer possibilidade de gestão estratégica, desvirtua e desrespeita a relação com os fornecedores. Os efeitos negativos são múltiplos e fortalecem-se entre si acabando, infelizmente, por prejudicar o doente.
É importante sublinhar que dinheiro que aparece no final do ano já não vale o mesmo que valeria no início. Em 2022, esta verdade ficou ainda mais evidente porque a inflação rondou os 10%. Quando o financiamento fica aquém das necessidades, as dívidas vencidas acumulam-se — tem sido na ordem dos dois milhões de euros por dia no SNS — e os credores não podem fingir que a correção monetária é efetuada.
O fenómeno da inflação é uma evidência. O SNS sabe bem quanto está a pagar mais pelo gás e eletricidade, alimentação e consumos diversos. Assim, mais de 8% da transferência que o SNS recebe é absorvida pelo aumento dos custos — faço notar que o governo aumentou o salário mínimo para 760 euros e comprometeu-se a um aumento da massa salarial de 5,1% em 2023.
O Ministério da Saúde tem de tal forma consciência do impacto da inflação que aumentou significativamente os termos da contratualização interna. Mas, inexplicavelmente, não refletiu esse efeito na contratualização externa. Os valores das convenções não tiveram qualquer atualização. Ou seja, desvalorizaram, como ensinaria o prof. Cadilhe.
A este respeito, ainda recentemente a Entidade Reguladora da Saúde referiu que tem alertado “o Ministério da Saúde para a importância de os preços fixados serem eficientes, no sentido de se promover, simultaneamente i) aplicação eficiente dos recursos públicos,, ii) atratividade suficiente para, tendo em conta as condições de mercado, os operadores privados quererem aderir às convenções, assim promovendo o acesso à saúde e iii) incentivos à prestação de cuidados com qualidade e segurança por parte dos operadores privados.”
Não sendo acautelado este princípio, como alerta a ERS, há cada vez menos operadores convencionados com o SNS. O drama é que não é nada certo que eles aceitem voltar. Dito de outra forma, uma solução que era adequada e sensata meses antes, perde parte da sua eficácia se for decidida e concretizada tardiamente. Entretanto, as variáveis de análise mudaram, os agentes tiveram de ajustar-se e, pior do que tudo, a confiança entre as partes sofreu uma forte erosão e, nalguns casos, foi até definitivamente estilhaçada.
Na saúde, os operadores privados fazem a sua parte, mas percebem que as entidades públicas estão cada vez menos interessadas na sua colaboração. Aconteceu com o SIGIC, com as convenções de ambulatório, com a Covid-19, com o regime convencionado da ADSE, com as PPP, etc.
O que eram ou poderiam ser instrumentos de aumento da oferta de saúde aos portugueses e de alargamento do acesso aos cuidados cristalizaram-se em processos em que os laços de confiança foram esticados ao limite, enfraquecidos com suspeições e falta de diálogo.
Como o mundo não anda para trás, é impossível apagar a experiência adquirida e o que ela implicou. Se acreditarmos, e eu sou dos que acreditam, que o caminho do acesso universal, da eficiência e da sustentabilidade passa pela conjugação de esforços e pela articulação entre atores, tem — temos todos — de fazer um esforço para contruir relações de confiança assente em bases transparentes e com previsibilidade. O tempo não anda para trás mas o passado traz lições de futuro.
Presidente da APHP