
A guerra da Ucrânia não se justifica com o argumento de que estamos perante a democracia versus autocracia, defende Mendes Dias.
Na primeira parte da entrevista publicada na edição passada do Nascer do Sol, e que pode ler na edição online do semanário, o coronel Mendes Dias contou-nos o seu percurso militar e as razões que o fizeram passar à reserva e mais tarde à reforma. Explicou como o marcou a chegada a Portugal, em 1975, quando a mãe teve de proteger os três filhos, à saída do aeroporto, das pedradas contra os retornados. Mendes Dias deu ainda conta dos horrores a que assistiu na Bósnia, onde teve de desempalar homens com um pau pelo ânus acima, de tirar mulheres da corda, que tinham sido violadas e depois enforcadas, entre outras barbaridades. Questionado sobre a invasão da Ucrânia e as razões para os militares que a comentam na CNN Portugal terem opiniões tão díspares, o coronel deu o seu ponto de vista que agora aprofunda. Mendes Dias recusa ver esta guerra como um confronto entre democracia versus autocracia e dá-nos o seu olhar sobre as razões profundas do conflito. «A fronteira da Europa não pode começar na Polónia», defende. O coronel é casado com uma das praças do primeiro pelotão feminino do Grupo de Instrução da Escola Prática de Artilharia e tem um filho.
Acha que os majores generais Agostinho Costa e Carlos Branco têm informações dos russos?
Têm informação de todos. Podem é, de vez em quando...
Desculpe, mas no caso concreto dos ataques à Crimeia o major general Agostinho Costa afirmou que aquele ataque só podia ser efetuado por aviões estrangeiros, falando-se na possibilidade de serem ingleses.
Não sei quais foram as fontes, mas o que é correto é que não são britânicos. Isto é que é dizer a verdade.
Mas com que conhecimento é que diz que não britânicos.
Porque os MiG29 não equipam as forças britânicas. Podem é ter sido os britânicos e os americanos que ajudaram a reconfigurar o Fulcram MiG 29 para que possam usar os AGM88. E como fui à procura de saber? Porque neste último pacote de ajuda norte americana, pela primeira vez, constavam os mísseis AGM88. Então o pensamento honesto e leal é questionar porque é que se fornece se não pode ser lançado? Esta é a pergunta que se faz. Não é o contrário. Se não tiver a certeza digo muitas vezes estou a especular. Essas pessoas [os majores generais Agostinho Costa e Carlos Branco] têm as suas opiniões, informadas de determinada maneira e podem até colocar, coisa que eu não faço, não sei se o fazem intencionalmente ou não, algum peso, algum estado de alma nas suas opiniões.
Não fica com urticária quando ouve os seus colegas falarem’
Se não lhe disser que, às vezes, fico com uma ‘pulsaçãozinha’ a mais, estaria a mentir. Claro que fico, mas não transponho isso para os meus comentários, os meus estados de alma, primeiro por questões de ética, embora as pessoas sejam livres de dizerem o que querem, não os levo para a TV
Mas, às vezes, o coronel vai, depois dos oficiais generais, à televisão dizer o contrário do que eles disseram. A história da Crimeia foi apenas um dos exemplos. Penso que um dos seus colegas defendeu que a Rússia está a ganhar a guerra...
E está. Nós temos de lidar com aquilo que é, independentemente do nosso gosto pessoal. Já estou farto de dizer que para a Europa e para os norte-americanos não calhava nada bem deixar a Rússia encostar de novo a fronteira da Europa à Polónia, nem deixar encravar a Ucrânia no Mar Negro. Esta é que é para mim a verdadeira questão.
Como assim?
Repare que sempre que a fronteira da Europa esteve na Polónia houve problemas. Por isso é que as senhoras polacas foram violadas pelos alemães, depois pelos soviéticos. Está na grande planície norte-europeia, Polónia, Ucrânia, por isso é que Ukraine quer dizer fronteira. Verdadeiramente, a fronteira da Península Europeia passa pela fronteira ainda hoje internacionalmente reconhecida, como não podia deixar de ser, a fronteira oriental da Ucrânia. A vitória na Guerra Fria face à União Soviética permitiu empurrar a fronteira da Europa que estava na Polónia, lá para a verdadeira fronteira da península europeia, lá para leste, para a Ucrânia, que funciona como um ‘tampão’, quer para um lado como para outro. Esta é a fatalidade posicional. A norte é a Bielorrússia e a sul tem os Cárpatos. E se a Rússia pretende dar profundidade estratégica para oeste, nós também o pretendemos para leste. Isto quer dizer, de forma simples, que se necessitarmos de trocar espaço por tempo, é possível fazê-lo. Podemos dar como exemplo o caso russo quando Napoleão para lá investiu. Os russos foram dando território, queimando tudo, recuando para depois ganhar condições para repelir os opositores. O que significou a derrota da União Soviética ou a implosão, como lhe queiram chamar? Significou milhões de quilómetros quadrados perdidos, milhões de habitantes. Mas o que significou também? O Mar Cáspio era um mar soviético, deixou de o ser. Na Geórgia perdeu o acesso ao mar daquele lado, agora já o tem com a Abecásia, não se lembra da guerra de 2007? Lá em cima, com os países bálticos, perderam a saída para o Mar Báltico. Os portos de Riga, Talín... é isto que quer dizer implosão da União Soviética. E, portanto, a procura dos mares quentes é uma constante histórica, que já vem do tempo do pai de Catarina II da Rússia. Portanto, não é correto colocar esta guerra no patamar da democracia versus autocracia. Ainda disse há poucos dias na TV como é que nós fazemos disto um absoluto? E isto não é ser pró- -Rússia, pró-Ucrânia, pró-nada, é uma análise honesta, intelectual, leal – quando jogamos dessa maneira da democracia versus autocracia esquecemos que procuramos acordos com o Azerbaijão. É o Azerbaijão uma democracia? Procuramos acordos com os Emirados Árabes Unidos. São os Emirados Árabes Unidos uma democracia? Procuramos acordos com a Venezuela. É a Venezuela uma democracia? O bandido que era o príncipe saudita, que deixou de o ser rapidamente. É a Arábia Saudita uma democracia? Como é que nós podemos colocar isso neste patamar? Eu tenho muita dificuldade em ver isto assim, embora perceba. Podemos encarar a China como uma democracia? Queremos que a China deixe de apoiar um lado, mas depois sabemos que, em 2021, a Volkswagen vendeu para lá 3,3 milhões de viaturas. Pode a Volkswagen resistir sem o mercado chinês? Eu ponho isto neste patamar.
Leia a entrevista na íntegra no site do Nascer do Sol