Esqueleto com mais de mil anos impulsiona investigação sobre síndrome de Klinefelter

Esqueleto com mais de mil anos impulsiona investigação sobre síndrome de Klinefelter


Os sinais e sintomas da síndrome de Klinefelter variam amplamente entre os homens com a doença. Muitos deles apresentam sinais considerados ‘leves’ e, por isso, a patologia pode só ser diagnosticada na idade adulta. Ou nunca. No entanto, uma equipa de investigadores, liderada por um português, fez uma descoberta que pode revolucionar o estudo das…


Síndrome de Klinefelter: eis o nome da doença que se baseia numa cópia extra do cromossoma X em indivíduos do género masculino. Esta doença, geralmente, não é diagnosticada até à idade adulta e desconhece-se o número de pessoas exato que a tem.

Esta patologia afeta o crescimento testicular, resultando em testículos menores que o normal, o que pode levar a uma menor produção de testosterona. Causa também redução da massa muscular, redução de pelos corporais e faciais e aumento do tecido mamário, sendo que as consequências desta síndrome variam entre indivíduos.

A maioria dos homens com síndrome de Klinefelter produz pouco ou nenhum esperma, mas os procedimentos de reprodução assistida podem possibilitar que tenham filhos se assim o desejarem. Por esta doença ser considerada rara, uma equipa de investigação internacional, liderada pela Universidade de Coimbra (UC), não esperava identificar um dos casos mais antigos de Klinefelter. No entanto, chegou a essa conclusão ao estudar um indivíduo que viveu, há cerca de mil anos, em Castro de Avelãs, Bragança, durante o período Medieval. 

O estudo “A 1000-year-old case of Klinefelter’s syndrome diagnosed by integrating morphology, osteology, and genetics”, agora publicado na mundialmente conhecida revista científica The Lancet, foi coordenado por João C. Teixeira, investigador português em genética humana afiliado da Universidade de Coimbra, atualmente a desempenhar funções na Universidade Nacional da Austrália, em Camberra.

“Vim para a Austrália via França, via Alemanha e via Portugal! Saí do país há 11 anos. Sou do Porto, fiz a minha formação académica lá em Biologia e Genética Forense e, depois, fiz o doutoramento na Alemanha no Instituto Max Planck. Daí fui para o Instituto Pasteur, em Paris, e depois para a Universidade de Adelaide. Passei um ano e meio em Portugal, há espera de um visto para regressar, e voltei agora. Estou na Universidade Nacional da Austrália, em Camberra”, começa por explicar o coordenador do estudo, João C. Teixeira, em declarações ao i.

“Sou afiliado da Universidade de Coimbra e vou dar aulas no doutoramento em Estudos Contemporâneo: falar de Ciência para pessoas mais ligadas às Humanidades. Mas dou seminários e coisas semelhantes na Austrália”, sublinha o investigador que, como é possível ler no seu perfil online, da Universidade de Adelaide, trabalha “com uma ampla gama de tópicos na vanguarda da genética evolutiva humana moderna, incluindo inferência demográfica, genómica comparativa e seleção natural”.

“Atualmente, o meu foco principal de pesquisa gira em torno da evolução humana durante o Pleistoceno, em particular os eventos de mistura entre os chamados humanos modernos e arcaicos após a saída da África e antes da colonização humana do Sahul. Sou especialista em descobrir assinaturas de seleção natural no genoma e continuo a estudar como a diversidade genética vantajosa pode ser mantida por milhões de anos em populações naturais”, lê-se na informação acerca do investigador que se juntou a especialistas em genética, estatística, arqueologia e antropologia, como investigadores do Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra (CEIS20), da Faculdade de Letras da UC (FLUC) e do Centro de Investigação em Antropologia e Saúde (CIAS) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC). 

“Castro de Avelãs tem uma forte carga histórica, até porque foi, provavelmente, a capital dos Zoelas, um povo referido por Plínio (autor romano do século I), e sede da paróquia sueva de Brigantia, que está na origem da atual cidade de Bragança”, explica João C. Teixeira, que espera que o novo método estatístico, desenvolvido por si e pela sua equipa, permita, no futuro, “diagnosticar outras anomalias cromossómicas, como por exemplo casos de síndrome de Down, podendo ser também aplicado a contextos forenses e de diagnóstico pré-natal, tal como esclarecemos no comunicado”.

A recuperação do ADN do indivíduo estudado decorreu no laboratório especializado do Australian Centre for Ancient DNA (na Universidade de Adelaide, Austrália). Após a confirmação dos resultados genéticos, sabe-se que uma equipa de antropólogos da Universidade de Coimbra encontrou evidências morfológicas no esqueleto compatíveis com a síndrome de Klinefelter.

Como surgiu o tema desta investigação? 

Tenho colaborações, que se iniciaram em 2018, com colegas da Universidade de Coimbra. O objetivo é fazer um estudo genético daquilo que foram as populações, no passado, em Portugal. Este indivíduo faz parte de um conjunto de indivíduos de Castro de Avelãs, em Bragança, que estão a ser estudados geneticamente. Temos 14 e conseguimos informação genética de seis: nem todas as amostras funcionam porque estão bastante degradadas.

Fazemos a extração do ADN a partir de um osso do crânio, que é a parte petrosa, um dos ossos mais densos do corpo em que a preservação do ADN é mais eficaz. Fazemos a extração das moléculas do ADN em condições experimentais controladas e, portanto, esse tipo de laboratório não existe em Portugal e tivemos de fazer as análises na Austrália. Foi um golpe de sorte: fazemos uma construção de um puzzle. Pegamos nas moléculas, o ADN está fragmentado: temos de saber onde cada peça encaixa.

Depois de fazermos a sequenciação genética, temos de saber onde encaixam no genoma humano. Aquilo que observámos é que o número de peças que mapeavam no cromossoma X e no Y eram indicativas de que esta pessoa tinha dois cromossomas X e um Y. Havia um excesso de peças de puzzle, digamos assim. 

Os indivíduos afetados por esta síndrome podem apresentar patologias como osteoporose. Têm forma de saber se este indivíduo teve mesmo estas doenças?

Fizemos análises osteológicas para avaliar a possibilidade de ter osteoporose: tinha uma densidade óssea baixa, mas não compatível com osteoporose. Não quer dizer que não viesse a desenvolver a doença, mas ainda não tinha desenvolvido aquando da morte. Quanto à obesidade, não conseguimos inferir isso, mas se for mórbida pode levar a que haja sinais no esqueleto. Neste caso, não conseguimos dizer nada.

Sabemos é que este indivíduo tinha uma estatura elevadíssima para aquela época: 1m80cm. Nos dias de hoje, é alto, mas dentro dos parâmetros normais: há mil anos, era mais ou menos 20 cm mais alto do que o resto das pessoas. Por isso, os meus colegas de Coimbra acharam que era um indivíduo não local, alguém que tivesse chegado a território português vindo de outro sítio. Mas não é este o caso porque a diversidade genética dele vai ao encontro daquilo que é conhecido no Ocidente Europeu. A estatura estará, de facto, relacionada com a síndrome.

Como chegaram a este indivíduo e aos restantes?

Este conjunto de indivíduos faz parte de um trabalho iniciado em 2012 por um colega meu que liderou escavações arqueológicas financiadas pela Fundação Calouste Gulbenkian, pelo Município de Bragança e pela Universidade de Coimbra com o fim de fazer uma intervenção em Castro de Avelãs num sítio que foi de importância histórica significativa.

O que aconteceu foi que, destas escavações arqueológicas, resultou a descoberta de um espaço funerário associado a esse povoamento, com aproximadamente 59 esqueletos. Foi assim que chegámos a este povo. Do ponto de vista histórico, estamos a falar de um povo da Idade do Ferro que até era descrito pelos escritores romanos. Durante o período romano, era um cruzamento de estradas entre várias capitais de província: Braga, Astorga e Mérida. Passavam também por Chaves e este município ficava ali numa encruzilhada, digamos assim.

E em período suevo foi uma capital onde, no fundo, está a origem mais remota de Bragança. É mesmo uma descoberta: não contávamos com isto. Foi possibilitado pela estratégia que usámos e revela que as análises complementares, muitas das vezes, fornecem informação que só as análises arqueológicas e antropológicas não oferecem.

Além desta síndrome, descobriram mais alguma?

Posso dizer que, em Portugal, não estamos ativamente a trabalhar nesse sentido. Este método pode ser expandido para detetar outro tipo de aneuploidias cromossómicas. A Síndrome de Down é um dos exemplos.

Por quantos investigadores é composto o grupo?

Por 13: maioritariamente portugueses, mas com esforço de colegas que estão noutro países. Tem é o carimbo da Universidade de Coimbra.

E o que pode dizer em relação ao diagnóstico pré-natal, que é referido no comunicado divulgado pela Universidade de Coimbra?

O mais importante a reter é que este tipo de análise é aplicável a contextos em que a quantidade de ADN possa ser baixa. Por isso é que falamos também nos contextos forenses, isto é, sempre que tenhamos uma amostra degradada ou não tenhamos uma amostra sanguínea…

Nesse tipo de contextos, este tipo de metodologia pode ser aplicado. Já temos milhares de esqueletos, na Europa, nos quais é possível avaliar a frequência de outro tipo de síndromes. Sabemos quantos casos é que houve no passado, até achamos que alguém pode encontrar um caso mais antigo da Síndrome de Klinefelter a qualquer momento.

Quais são os sintomas desta síndrome?

Estatura elevada, obesidade, osteoporose e alterações hormonais que levam a caracteres secundários como ginecomastia (aumento do peito) e até reduzida fertilidade. A razão pela qual não se fala muito nesta síndrome tem a ver com o facto de muitos casos permanecerem por diagnosticar: as pessoas podem ter perfeitamente uma vida normal.

E deve haver preconceito.

São questões que variam de indivíduo para indivíduo, mas penso que há casos em que as pessoas pura e simplesmente desconhecem que têm esta patologia. Por vezes, a mesma é detetada porque é necessário fazer um teste genético por outra razão. Não é que a doença não tenha complicações, mas das trissomias que são compatíveis com a vida, a mais conhecida é a Síndrome de Down e esta é outra. As outras não são compatíveis com a vida: quase nenhum indivíduo sobrevive para lá do primeiro ano de idade ou há abortos espontâneos. 

Fizeram um levantamento de quantas pessoas têm esta síndrome em Portugal? E noutros países?

Não fizemos, mas há quem o tenha feito: a estimativa é que afete entre 1 em cada 500 e 1 em 1000. Tem a ver com a falta de diagnósticos, estamos a falar de uma frequência mínima. De qualquer modo, se tivermos em conta o nosso país… Estaríamos a falar de aproximadamente 5 mil indivíduos. Seriam 10 mil se a síndrome afetasse as mulheres também. 

Estão a avaliar os restantes esqueletos e fizeram mais descobertas?

Posso dizer que temos trabalho a avançar e ADN para, pelo menos, mais cinco indivíduos. Em termos de resultados, para já… Não há mais nada desta dimensão. Antes houvesse! Esta é a primeira descoberta científica que faço no sentido em que nos outros projetos em que estive envolvidos foram coisas pensadas: tínhamos uma questão que queríamos abordar, verificávamos os dados, etc. Neste caso, não sabemos aquilo que vamos encontrar! Foi particularmente interessante por causa disso.

Em que investigações está envolvido na Austrália?

Trabalho em evolução humana e tenho feito alguns trabalhos sobre a origem da espécie humana e da colonização de várias partes do globo. Aqui, foco-me na chegada, há cerca de 60 mil anos, dos chamados homens modernos e nos cruzamentos que terão ocorrido entre esse grupo que saiu de África e populações residentes de outros grupos humanos que hoje estão extintos. No fundo, a miscigenação entre eles e os grupos designados como arcaicos, como homo erectus, neandertais. O grande foco da minha investigação é esse. Quero perceber quais são as origens genéticas portuguesas: tanto pelo plano pessoal como profissional!