
No centenário do poeta, ensaísta e cineasta italiano que se implicou até ao limite na crise e nos dramas da nossa época, denunciando um genocídio cultural e cumprindo um destino trágico, que ficou selado com uma morte violenta, Pasolini tornou-se uma espécie de mártir, uma figura poderosamente sentimental num tempo devastado pelo cinismo. No seu mais recente número, a revista Electra dedica-lhe um formidável dossier, com os ensaios de três autores que conhecem bem a sua obra e percurso e que nos explicam porque ele assume hoje mais relevância do que nunca.
Podemos começar por aquele rosto. Nas fotografias, ele continua a enfrentar quem o olha. Olha-nos e isso parece bastar. Como alguém que detém pela rédea, muito curta, o terror que irá lançar-se sobre nós, aquilo que já se mostra e faz sentir nas diversas formas sociais de sufoco a que estamos sujeitos. O seu olhar é o cuidar que resta, a fé que mantém aceso esse derradeiro laço entre nós: o desejo de ver, de testemunhar até à degradação absoluta. Sofrer com o outro nessa firmeza de segui-lo até ao fim, sem desviar o olhar. E daí a importância e o significado desse rosto, dessa postura de quem já se limita a fazer-se sentir na mais descarnada percepção crítica das coisas, sabendo que só resta aos homens fortalecer o carácter através da linguagem e da observação. Daí que o seu rosto pareça tão duro, cada vez mais duro à medida que a sua morte violenta se fazia pressentir, tendo ele arrancado todas as máscaras para nos enfrentar com as feições enterradas já na sua caveira.
O fim último das coisas é a degeneração, a vulnerabilidade de um gesto que não encontra qualquer correspondência no mundo, a incapacidade de se ler nele a busca e o desejo que lhe emprestaram algum propósito e firmeza. Houve sempre nas obras de Pier Paolo Pasolini não apenas uma extraordinária urgência sentimental como um carácter premonitório, uma espécie de estigma de destino, e isto mesmo está patente num dos tantos retratos que de si mesmo faz na sua poesia, e em que se prefigura o seu fim e como este só pode reflectir a ânsia desesperada com que se entregou à vida: “Olho com olhos/ de imagem os que vão linchar-me./ Observo o meu massacre com a coragem/ serena de um sábio. Pareço/ sentir ódio, mas escrevo/ versos cheios de amor atento./ Estudo a perfídia como um fenómeno/ fatal, como se dela não fosse objecto./ Tenho pena dos jovens fascistas,/ e aos velhos, que são para mim formas/ do mais horrível mal, oponho/ apenas a violência da razão./ Passivo como um pássaro que, voando,/ tudo vê, e, no seu voo para o céu,/ leva no coração a consciência/ que não perdoa.” Pelo caminho, ainda resolve essa contradição aparente entre aquele que trabalha “o dia todo como um monge” e à noite vagueia, “como um gato/ à cata de amor…”, notando como uma intensidade se vinga na outra, como o espírito se alimenta da carne e esta afina os seus instintos e o seu gozo pela capacidade perversa que a inteligência lhe oferece de expandir a sua selvajaria e vontade caprichosa.
Sempre que se fala de Pasolini, mais tarde ou mais cedo, é referida a sua necessidade de exibição e escândalo, pela atitude transgressora que se plasmava em posições que pareciam raiar um desconsolo absoluto, o qual fora afinando a sua indisposição face ao rumo do mundo numa poesia marcada pela imediatez física e corporal, e que se inscreve numa comunhão vitalista, em que, ao invés dessa distância necessária em que se coloca o formidável artífice da linguagem, afirmando a sua diferença e o seu génio, é a urgência na forma como o autor se dirige ao leitor, buscando uma proximidade de carne e osso, para exprimir a sua irresolução dolorosa, mergulhando no bem e no mal, na esperança e no pecado, é isso o que faz da poesia esse discurso prenhe de inquietação, e do entendimento entre dois seres a base de uma relação que supera todos os constrangimentos. Segundo Claudio Magris, Pasolini vivia como se fosse um messias dolente e pecador e como se as suas paixões, desejos, nostalgias e secreções pudessem redimir o mundo. “Com toda a sua aguerrida inteligência crítica, manifestava uma subjectividade exasperada até à exibição impúdica, esperança messiânica, proximidade visceral e promíscua, narcisismo descarado e egocêntrico, limo primordial irrigado pela água da vida, ainda que esta fosse turva e lamacenta.” Amiúde, mesmo entre aqueles que o admiram e tratam de homenageá-lo, há ainda uma certa reserva, não só no sentido de o proteger de se tornar um desses célebres e inofensivos clássicos, de o confundir com as “figuras a embalsamar em manuais ou lápides de mármore”, mas, como vinca Carla Benedetti num dos três textos dedicados ao poeta no mais recente número da revista Electra, parece resistir um sentimento ambivalente em relação a Pasolini, especialmente entre os literatos italianos. “Por um lado admiram-no, por outro sentem necessidade de exorciza-lo. Mesmo quando o celebram, mantêm muitas vezes uma certa distância, servindo-se de definições venenosas, como ‘populista’, ‘nostálgico do passado’, ‘vitimista’, ‘narcisista’". Embora, em parte, assuma algumas destas reservas, Magris entende que para dar testemunho poético dos dramas da realidade é, por vezes, necessário descender directamente aos remoinhos do vício por muito pantanosos que sejam, acercar-se da existência arriscando a indecência e a promiscuidade. O mais destacado ensaísta italiano nota que a egolatria do eu que se põe sempre em primeiro plano, declamando neste ou naquele sentido a sua atormentada vitalidade e o seu martírio, muitas vezes chega a ser insuportável e acaba facilmente por gerar a sua involuntária autoparódia, mas ressalva que sem essa participação fisiológica e ostentosa não é possível, em certos casos, assinalar o escândalo da miséria e da obscuridade em que são deixadas as criaturas. Nalguns momentos, Pasolini presta-se a que o acusem de confundir as tripas com a razão, de violar o princípio da contradição e lançar intrigas em nome do coração, mas, “sem essa transgressão da ordem, do bom gosto e às vezes até da honestidade intelectual não seria possível chegar alguma vez a fazer ouvir o grito que denuncia o intolerável da dor e exige a sua redenção”, adianta Magris. Sem a “desesperada vitalidade” que Eugenio Montale reconheceu em Pasolini (por quem não nutria qualquer admiração, mantendo, em muitos aspectos, uma postura diametralmente oposta, na sua atitude discreta e reservada, contrariando esse acto de denuncia escandalosa), não teríamos, no entender de Magris, “algumas das mais essenciais revelações da condição humana e histórica”.
No que toca ao estilo enfático e desabusado que Pasolini veio a assumir, esse foi ensaiado primeiro nos artigos de jornal e tomou depois conta da sua poesia, não apenas ao conduzi-la a um registo próximo da prosa, mas ainda, segundo Alfonso Berardinelli, deixando o lirismo dialectal para desembocar no poemeto civil, rasando o limite do desleixo estilístico, em versos dissimulados, num regime formal incerto e informe, denunciando como a poesia, com os rigores das suas cadências e o os artifícios sintácticos, se mostrava imprópria para o armar de um discurso potente e agressivamente argumentativo. “Pasolini inventava um novo e eficaz organismo formal: o poemeto ideológico em prosa”, com versos que mantinham o fulgor e a passada feroz dos seus artigos de jornal, deslocando a atenção técnica para a prosa polémica. “Tocar nos confins da poesia, deslocá-los, forçá-los, tornava-se um acto vital, necessário para sair de sistemas estilísticos que tendiam a fechar-se." E o motivo por que as celebrações do centenário do nascimento de Pasolini assumiram uma tão vasta reverberação, mesmo fora de Itália, com uma infinidade de artigos em jornais de todo o mundo e uma articulação de outros sinais de que a sua figura se mantém presente e as suas leituras e acusações mantém a sua eficácia, tudo isto se deve, segundo Carla Benedetti, à forma como Pasolini rejeitou a postura algo distante e cínica típica dos intelectuais e foi um pensador que se debateu com a fragmentação que provoca o mundo moderno e escolheu traduzir na carne essa angústia e rejeição da forma como as sociedades urbanas globais nos transformam em seres maleáveis e inócuos, que abdicam das suas tradições e valores em troca de um regime hedonista que leva à dissolução da capacidade de moldar o mundo segundo as nossas convicções.
Assim, Pasolini inventou-se como figura trágica que faz frente à urgência actual para fazer tábua rasa de todas essas instituições e valores que o homem cultivou ao longo de séculos, batendo-se até à exaustão contra a homogeneização industrial da consciência, contra a adesão à ideologia consumista que produzia aquilo que ele identificou como uma mutação antropológica, um genocídio cultural que interrompe a linhagem humana e a substitui por estes sujeitos esvaziados de propósito e de capacidade de afectar o meio à sua volta, esta relação fantasmática com o mundo, à medida que a vontade, os desejos e a capacidade de gozo são substituídas por formas de compulsão e respostas dirigidas a partir do exterior, nesse programa que procede a uma sincronização em massa da consciência e da memória. Pasolini foi dos pensadores que de forma mais desaustinada e agressiva apontou para os efeitos degradantes de um regime que actua por meio de uma hipnose libidinal e que atrofia os impulsos de modo a produzir uma estandardização da experiência em grande escala, o que, no fundo, não apenas faz desaparecer o povo, como cria as condições de alienação para que se dê uma degradação da intimidade, com os indivíduos a serem subtilmente colonizados, levando a uma perda da identidade e singularidade subjectivas. Isto é evidente hoje nessa forma de participação imbecilizada nas redes sociais e que arregimenta os subscritores a preencher um número limitado de avatares que ali se digladiam de forma aparentemente feroz, num simulacro de batalha campal, em que supostamente estão em causa diferentes concepções do mundo que parecem entrar em choque, quando, na verdade, o que acontece é que a incapacidade individual para gerar os símbolos e as noções que intercambiamos leva a essa angústia daqueles que, estando limitados a papaguear os resíduos de certas formulações mediáticas, acabam por extravasar emocionalmente num azedume em que tudo se reduz a uma estéril troca de insultos e ameaças que nem sequer são honradas quando, posteriormente, estes adversários se cruzam fora deste plano virtual.
Pasolini, por outro lado, mostrou-se de uma coerência terrível, só aparentemente contraditória, de tão sulfúrica que era, rasgando por entre todas as interpretações ingénuas e dicotomias imbecis, desde logo provando como um movimento conservador nos nossos dias teria de tornar-se intransigente ao ponto de assumir uma feição revolucionária. Até porque, como se sabe, aquele optimismo imbecil e desvitalizado dos profissionais do humanismo progressista consegue sempre encontrar meios de justificar a sua adesão a concepções degradantes para a condição humana em nome de um amanhã que, por estes dias, em vez de uma utopia instigante, vai sendo simplesmente chutado como uma lata, um álibi para aqueles que preferem gozar o seu conforto e bem-estar num mundo que, afinal, sacia bastante bem o seu hedonismo. E vale a pena seguir Bruno Moroncini quando este nos lembra os versos do poema “O enigma de Pio XII”, em que Pasolini se dirige “aos jovens contestatários burgueses de 68, atacando-os duramente pelo seu idealismo abrangente, sob o qual se esconde um individualismo desenfreado que se opõe não apenas à instituição familiar, mas às instituições enquanto tais. Estes jovens ‘laicos, inteligentes, estupendos’, que berram ‘para reivindicar para o homem o direito à completa, absoluta,/ irredutível liberdade (responsabilidade)’, pensam-se a si mesmos e pretendem ser como ‘órfãos, sem mais pais ou mães’. E, contudo, ‘as instituições são comoventes,/ e comoventes porque existem: porque/ a humanidade – a pobre humanidade – não pode passar sem elas.’ Tão comoventes são as instituições que se pode até morrer por elas. ‘Belas almas do caralho’ – assim se dirige Pasolini, de modo hegeliano, à juventude de 68 – ‘por que outra coisa morrerão/ os dois irmãos Kennedy se não/ por uma instituição? E por que outra coisa se não por uma instituição/ morrerão tantos jovens vietcongues?/ Pois as instituições são comoventes: e os homens/ não sabem reconhecer-se senão nelas./ São elas que os tornam humildemente irmãos.’”
Nesse empenho em fazer do verbo carne, Pasolini rejeita os signos abstractos e gerais, entendendo que para se apreender um acontecimento ou um estado de coisas é preciso mergulhar nas profundezas do quotidiano, nos hábitos e nos comportamentos de forma a dar conta daquilo que há de verdadeiramente peculiar, o que é intimamente móvel, essas forças internas e em constante desenvolvimento, e soube assim afrontar as questões políticas e civis do seu tempo, numa série de análises e diagnósticos clarividentes que só agora começam a alcançar plenamente o seu momento de legibilidade. Assim, actuou como um batedor que viu os primeiros sinais e manifestações de um novo fascismo que estava a instalar-se na nossa vivência quotidiana, um veneno vaporizado e que contamina o ar do tempo, um fascismo que resiste a ser identificado por ser não apenas muito diferente daquele que levou à devastação da Europa no século passado, mas por se inscrever a um nível bem menos aparente, que não precisa de capturar as estruturas do Estado, mas actua por meio de uma coacção difusa, um enredo mais ou menos subtil e que vai limitando a nossa perspectiva sobre a realidade, e que para ser revelado obriga a que se busque os seus sintomas por meio de uma análise molecular, micropolítica. É algo que se torna patente no modo como nos sujeitamos cada vez mais a formas de intrusão biométrica e de vigilância, e como, mesmo na ausência de uma compulsão directa, escolhemos fazer ou expressar o que nos dizem para fazer, como vai sendo urdida uma estrutura mediática que atravessa todos os aspectos da nossa vida e até da intimidade, confunde o tempo de trabalho com o de ócio ou lazer, e é essa permissividade geral para que a gestão do nosso corpo, das nossas ideias, do nosso tempo livre e de todas as nossas necessidades nos seja imposta externamente. Pasolini viu como estava a ser urdida essa trama com vista à integração cada vez mais intensa do nosso tempo de forma a facilitar a perpetuação de um exercício de consumo imparável, isolamento social e impotência política. Assim, como sintetiza Carla Benedetti, ele “viu a ascensão de um ‘novo poder’ tolerante e, ao mesmo tempo, criminoso, responsável pela maior “mutação antropológica’ jamais ocorrida na modernidade, destruindo estruturas morais da sociedade, transformando os cidadãos em consumidores e os pobres em consumidores frustrados, produzindo infelicidade e violência” Este processo que Pasolini definiu como um “genocídio cultural”: “uma espécie de ‘aculturação’ semelhante à que fora sofrida por muitos povos colonizados”, escreve Benedetti.
Se a obra e a vida de Pasolini são indestrinçáveis, se escolheu abdicar do prestígio artístico, sendo que os seus méritos como poeta e romancista ou cineasta certamente eram suficientes para se ter afirmado como uma das grandes figuras da cultura italiana da sua época, foi porque entendeu que se exige de um intelectual que exerça uma função crítica sobre práticas políticas globais, um esforço de evitar uma renovação das forças totalitárias, isso não apenas dominou a sua actuação e a sua imagem pública, desde logo ao dirigir-se ao grande público a partir das páginas das revistas e dos jornais com uma série de artigos e ensaios que marcaram a fase “corsária”, numa alusão à “guerra de corso, em que os navios pequenos e velozes dos corsários assaltavam a poderosa marinha mercante inimiga, mas foi também decisivo à medida que aquela prosa argumentativa e energicamente ritmada assaltava os poemas, com os versos a adaptarem-se a um registo intenso e lancinante, prosseguindo a denúncia de um mundo tomado por uma nova civilização imbecilizada e neofascista. Assim, ao invés de uma atitude de sóbria distância e desses pontos suspensivos por meio dos quais muita da poesia que desde então se escreve pretende demarcar-se, fingindo assim resistir a essa colonização, Pasolini vestiu os males do seu tempo como uma doença da pele, deixou-se contaminar e exibiu as escoriações e as escaras, investiu-se nessa plenitude trágica que é cada vez mais raro encontrar nos novos artistas ou poetas, que abdicam de ter um discurso que exprima um alto grau de convicção e inteligência do mundo e da literatura, e não é, de resto, “uma casualidade que, entre os poetas mais jovens, não se encontre nenhum crítico”, como nos diz Berardinelli. Assim é em Itália e em Portugal, onde a crítica passou a ser praticada de maneira oportunista: “fazem-se algumas resenhas, trocam-se favores, mas não se encontram grandes personalidades críticas”, nota o ensaísta italiano, que vinca que antes, pelo contrário, o poeta era frequentemente também um crítico de grande valor. E Pasolini foi-o certamente, alguém que manteve uma intervenção vigilante e apaixonada, reflectindo os vícios do tempo “com uma desproporção sentimental que derruba os limites habituais das coisas”, diz Carla Benedetti. Isso fez dele uma figura de tal modo desconcertante que a sua centralidade na cultura italiana das últimas décadas se tornou um facto inegável. E para Benedetti isso ficou patente no centenário, notando que nenhum outro escritor italiano tenha sido alvo de tantos festejos, com a excepção de Dante, celebrado no ano passado por ocasião dos 700 anos da sua morte. E a inquietude e o fervor que Pasolini gera, liga-a a essa urgência sentimental que “faz deslizar os planos seguros em que julgamos caminhar e vemos vacilarem as certezas que reconfortam o sentir comum”.
E voltamos ao rosto de Pasolini, e a outro dos seus retratos, este retirado desse “fragmento de carta para o jovem Codignola”: “Para além desta aparência, deste disfarce,/ nada mais tenho a dizer-te./ Sou avarento, o pouco que possuo/ está bem fechado neste meu coração diabólico./ E os dois palmos de pele entre a face e o queixo,/ por baixo da boca torcida de tanto sorrir/ de timidez, e o olhar que perdeu/ a sua doçura, como um figo que azedou,/ parecer-te-iam o retrato/ fiel dessa maturidade que te faz sofrer,/ uma maturidade não fraterna. De que pode servir-te/ alguém da tua idade ─ mas entristecido/ na magreza que lhe devora a carne?/ O que ele deu, está dado, o resto/ é árida piedade.”
Vinícius Nicastro Honesko lembra como Pasolini havia declarado sentir um desespero ontológico total diante de uma situação histórica em que o neocapitalismo avassalador estaria a transformar de tal modo a própria natureza humana que em breve seria muito difícil escapar a uma vida não idiotizada, que é precisamente esta que se impôs com a actual cadência acelerada e no regime 24/7 que rasura qualquer sentido de horizonte temporal alargado e partilhado pelo colectivo, e que se organiza segundo “objectivos individuais de competitividade, progresso, aquisição, segurança pessoal e conforto à custa dos outros” (Janathan Crary). Ao contrário da larga maioria dos artistas que aderem aos mesmos pressupostos de competitividade e buscam alcançar prestígio e publicidade nos meios mediáticos, Pasolini inverteu as expectativas, e actualizou a figura do herege moderno como alguém que não se conforma com um mundo revolvido em todos os seus fundamentos: “da insanidade política à financeirização infinita, da cumulação primitiva acelerada à crise climática irreversível” (Honesko). Em grande medida, ele insurgiu-se contra a classe de intelectuais a que Paul Nizan chama os “cães de guarda”, esses escritores, académicos e comentadores tecnófilos ansiosos por qualificar a atenção mediática e ávidos por recompensas e acesso aos que estão no poder. A sua relação de denúncia com as lógicas de ganância que hoje se tornaram aceitáveis e são activamente encorajadas ficou bem expresso numa espécie de testamento que Pasolini entregou ao jornalista inglês Peter Dragadze, pouco tempo antes da noite entre os dias 1 e 2 de novembro em que foi brutalmente assassinado. Nessas folhas ele contraria essa atitude optimista que caracteriza hoje os intelectuais que participam na negação do cenário de terror e devastação que está já sobre nós, deixando claro que não prevê qualquer possibilidade de melhoria. “O indivíduo que faz algo propondo ‘o melhoramento do mundo’ é um cretino.” E Honesko explica que a ideia de melhorar o mundo implica uma aceitação deste novo ser humano forjado pelo neocapitalismo, o qual se acha instrumentalizado e está perfeitamente moldado à nova razão do mundo: “a governamentalidade total da vida”. Ora, naquelas que foram as últimas palavras de Pasolini numa entrevista dada dias antes de morrer, ele traça uma linha de demarcação fundamental face a esses intelectuais que, embora reconhecendo a crise existencial que vivemos, continuam a procurar as benesses e a aproximação ao poder. Para Pasolini a única atitude comprometida é de uma recusa total: “A recusa sempre foi um gesto essencial. Os santos, os eremitas, mas também os intelectuais, os poucos que fizeram história são aqueles que disseram ‘não’ (…). A recusa, para funcionar, deve ser grande, não pequena, total, não sobre este ou aquele ponto, ‘absurda’ e não de bom senso.”
Por esta lucidez e esta intransigência, pela capacidade de se colocar verdadeiramente na posição mais difícil, a do um contra todos, é que este herege mantém uma presença cada vez mais afirmante, num momento em que se exigem mártires, figuras que se contraponham ao regime de cretinização que leva a que tantos dos que falam em nome da cultura procurem encontrar meios de compromisso com um modelo intolerável, pactuando com “o consolo das consciências, essa espécie de álibi do bom cidadão em busca de um mundo melhor” (Honesko). Pasolini aceitou o absoluto desespero da nossa situação, reconhecendo que só resta a coragem de não desviar o olhar, não participar na trapaça, enfrentar o sofrimento dos outros e o nosso, sem abdicar da vida, mas levando no coração até ao fim essa consciência que não perdoa.